terça-feira, 18 de junho de 2024

Suzana do Amaral, artista do papel machê


Suzana do Amaral artista
Pedaços de mim
Papel machê sobre eucatex

Foi numa das tardes quentes do Rio que conheci as obras de Suzana do Amaral. A exposição Reflexivas, no Centro Cultural Correios, apresentava uma seleção de seus trabalhos, com curadoria centrada em memórias afetivas, considerações ambientais e aspectos histórico-pessoais. A opção me pareceu tímida de início, mas se mostrou correta. Esses fatores são importantes para a produção de nosso tempo. Inserem o artista em contextos mais amplos, colocam-no em diálogo com a sociedade e levam o fruidor a reconhecer, nas obras, temas urgentes de sua própria vida. Mas pretendo aqui tecer comentários de outra natureza, a respeito das obras de Suzana do Amaral em si mesmas, ou seja, em seus aspectos composicionais e de linguagem, já que são trabalhos dignos de maior atenção desde esse ponto de vista mais específico, que é o da arte.

Suzana do Amaral nasceu em Barra do Piraí, Rio de Janeiro, em 1969, e desde os anos 90 dedica-se a obras tridimensionais em papel machê. A técnica consiste na trituração de papel embebido em água e no trabalho sobre a massa resultante, mantida coesa pela adição de cola e, eventualmente, outro elemento enrijecedor, como o gesso. O manejo pode dar origem a materiais dos mais lisos aos mais corrugados, variáveis conforme o grau de compressão, trituração e as características do papel escolhido. Para conferir heterogeneidade à massa, diferentes papéis podem participar da mistura, com diferentes cortes e graus de trituração.

O papel machê, tão empregado no artesanato e paramentos de festas populares, é explorado por Suzana em múltiplas outras potências. Pela experimentação de volumes, texturas, espessuras, consistências, pigmentação e misturas, adquire novo status, revelando uma ampla gama de possibilidades criativas e expressivas. Se outros materiais concorrem, vez ou outra, para as obras, como plástico, ferro e cimento, é o papel machê o cerne de toda sua inventividade.

Rejeitando o acaso, as obras de Suzana são produto de uma construção de relações. Projeções volumétricas surgem aqui e ali, estabelecendo ora conjuntos, ora complementos antitéticos entre cheios e vazios, positivo e negativo, formas definidas e indefinidas, estado potencial e consumado. Evocações biológicas, cósmicas, culturais e telúricas se fazem presentes, bem como sugestões arquetípicas masculina e feminina. As formas, no geral, não consistem da representação de figuras nem de elementos conhecidos. Não são meramente alusivas. Instituem, em vez disso, analogias que preservam a obra enquanto de natureza e caraterísticas próprias, corporificando as ideias das quais participam.

Suzana do Amaral artista
Papel machê e tinta acrílica sobre eucatex

A cor nessas criações não é explorada nem para grafismos nem com a finalidade de surtir efeitos decorativos. Atua como atributo da matéria. Mesmo se aplicada posteriormente, age de modo que cada elemento seja percebido como de origem e função específicas. Os tons são terrosos em sua maior parte, e comedidos. O preto destaca-se pelo brilho, enquanto o vermelho, verde e marrom tendem ao fosco. Tal partido cromático, de tons presentes na natureza, mantém a obra livre de associações com o simulado e o artificial, traçando paralelismos com relevos e organismos em multiplicação.

As criações de Suzana requalificam materiais e relações, reordenam o heterogêneo, aquilo que um dia existiu sob outro arranjo e propósito. Guardam, por isso, um quê de cíclico, cuja anterioridade é apenas parcialmente conhecida. Remetem a certo formalismo moderno, bem como ao pós-minimalismo e à Land Art, mas têm os pés fincados nas questões contemporâneas mais atuais. Para além de um mero arcabouço discursivo, as considerações ambientais da artista são uma práxis que tem nas obras seu verdadeiro produto. Suas memórias afetivas e aspectos histórico-pessoais participam, assim, como componentes na geração de ideias, não como pontos de inflexão saudosista. O tempo, aliás, passa calmo em suas obras, quase imperceptível, contribuindo para o resultado de equilíbrio e discrição.

Numa época de fetiches econômicos e teóricos, as obras de Suzana do Amaral preservam a sinceridade da arte. Guardam o sabor do livre-fazer, desapegadas de luxos e frivolidades. Demonstram, desde os preceitos conceptivos, que é na elementaridade das coisas onde estão as respostas para a crise de nosso tempo.

Suzana do Amaral papel machê
Papel machê e tinta acrílica preta sobre
madeira reaproveitada



2 comentários:

Renato Guarino disse...

Ótimo rexto, que ativa o entendimento de trabalhos que parecem muito interessantes.

Roberto Ormond disse...

Obrigado, Renato.
É uma produção realmente interessante, em especial as obras maiores, com materiais diversificados. Esperemos por mais exposições!