sexta-feira, 7 de maio de 2010

Por que ler Vitrúvio ?




O mercado editorial descobriu a arquitetura. Nas livrarias séries dedicadas a estilos históricos repletas de ilustrações disputam as prateleiras com enormes inventários do patrimônio de cidades como Veneza, Roma, Paris e Florença. Isso sem falar das edições exclusivas, dedicadas à obra de um único arquiteto que mesclam doses de biografia e crítica numa linguagem acessível e objetiva.
Em meio a essa oferta tentadora de títulos, resistir ao marketing extravagante de um Frank Gehry ou dos arranha-céus de vidro não é tarefa simples. Aliado à midia de massa, o conceitualismo pós-moderno vem explorando repertórios cada vez mais exóticos para cativar um público sempre interessado em novidades. Assim a arquitetura do espetáculo se estabelece como um dogma pop que mistura cultura e lazer em proporções capazes de ofuscar até mesmo distinções importantes entre efêmero e duradouro, regional e universal, precedente e secundário.
Para garantir alguma escala de valores e auxiliar na estruturação do conhecimento as estantes já oferecem títulos contemporâneos imprescindíveis. Le Corbusier, Giedion, Argan, Kenneth Frampton, Aldo Rossi, Portoghesi e tantos outros nomes que também figuravam nos catálogos de edições importadas ou esgotadas estão agora disponíveis em português e ao alcance de todos. Mas nenhuma dessas obras merece ser folheada antes do Tratado de Arquitetura de Vitrúvio, uma referência raramente lida até mesmo nos meios acadêmicos.
Dividido em dez livros, o Tratado condensa em cerca de 500 páginas informações fundamentais para a compreensão da arquitetura da Antiguidade. Sua importância contrasta com os poucos dados que restaram sobre o autor, um arquiteto romano cujo único nome conhecido, Vitrúvio, permaneceu nas sombras da história por 15 séculos. A redescoberta e divulgação dessa obra partir de 1414 não tardaram a chamar a atenção de Leon Battista Alberti, Sebastiano Serlio e Andrea Palladio que, baseados em suas lições, influenciaram todo o desenvolvimento posterior da arquitetura.
Vitrúvio determina o caráter prático de seus escritos logo nos primeiros capítulos do Tratado, quando estabelece que a terminologia adequada à arquitetura não é a poética. Para ele sua arte está inserida num conjunto de relações econômicas, sociais e políticas associadas basicamente ao prestígio do governante. Conclui assim que é fundamental para o arquiteto ser versado desde a tenra idade em diferentes áreas do conhecimento como literatura, desenho, medicina, filosofia, leis, história e música. Da medicina, por exemplo, serão extraídas noções da proporção humana; da história, o conhecimento das tradições e costumes; da filosofia, os valores que o afastarão da cobiça. A perfeição, contudo, será para o arquiteto um valor inatingível, pois os próprios especialistas das áreas por ele estudadas são incapazes de alcançá-la.
A contribuição mais importante do espírito prático Vitruviano é o entendimento da arquitetura como uma arte estruturada sobre os princípios inseparáveis de solidez, utilidade e beleza. Essa estruturação é o cerne de seu pensamento e compreende o arquiteto como um indivíduo capaz de promover a edificação de algo resistente, que sirva à atividade humana e seja belo. Para alcançar a beleza é necessário que a construção apresente aspecto agradável, elegante e que suas medidas estejam equilibradas numa lógica de harmonia entre o todo e as partes. À essa lógica de equilíbrio o autor associa outras condicionantes, como a utilização sábia do espaço e a adequação da arquitetura à cultura e seus preceitos artísticos. Assim, o arquiteto deve possuir não só o domínio das técnicas empregadas na sua obra, mas também o conhecimento das normas culturais e artísticas vigentes.
Além de dedicar-se às edificações, Vitrúvio investiga aspectos estratégicos das cidades e estabelece como elementos determinantes para seu progresso a qualidade do solo, fontes de água e orientação das ruas em relação à incidência de sol e ventos. Esses fatores abrangem desde o suprimento urbano até a saúde de seus habitantes, além de compreenderem a adequação da arquitetura ao clima local.
Vitrúvio foi um grande admirador da Grécia e prestou-lhe enorme reverência no decorrer de todo seu Tratado. Dos antigos templos extraiu um variado repertório de proporções, disposições e correspondências utilizado até hoje para o estudo das técnicas construtivas da Antiguidade. A leitura de seus dez livros proporciona um raro contato com um homem que cultivou áreas do conhecimento imprescindíveis não apenas ao exercício de sua arte, mas também à estruturação de uma rica base de referências culturais que abranjem os mais diversos ramos da atividade humana.

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