terça-feira, 3 de agosto de 2021

Estado Bruto no MAM RJ

Os novos ares que circulam pelo MAM renderam mais uma exposição notável, dessa vez ao encontro de certa imaginação do público a respeito do acervo do museu. Não há visitante que nunca tenha se perguntado sobre o conteúdo da coleção, as obras guardadas, pouco expostas, e o porquê do oblívio.  Uma incursão pelo acervo de esculturas - melhor dizendo, obras tridimensionais - do MAM é oferecida pelos curadores da mostra Estado Bruto. Uma incursão nada comum, com o maior número dessas obras apresentado em toda a história do museu.

Estado Bruto deixa de lado o esquema tradicional de cronologias, releituras ou defesas de tal ou qual ponto de vista sobre determinado artista ou assunto. É claro que um caráter panorâmico permeia a proposta, mas de modo difuso, intercruzado, já que as obras não estão dispostas segundo uma sequência de criação. Elas estão agrupadas em diálogos, com suas distintas linguagens, abordagens, concordâncias, discordâncias, antíteses, analogias e, em especial, suas complementaridades. Cabe ao visitante colocar em ato essa interação potencial e também tirar suas próprias conclusões sobre a razão de terem sido, historicamente, mais ou menos apresentadas. Não é necessário que se chegue a um juízo único nem previamente desejado a partir dessas interações. O que importa, afinal, é a multiplicidade de pontos de vista e a celebração da arte e do acervo do museu.

Vivemos um tempo em que narrativas oficiais caíram em descrédito e instituições se renovam, buscam essa reaproximação do público afastado pelo velho exclusivismo do meio cultural. Hoje, se alguém sente-se excluído de um círculo, encontra outros círculos com um toque no celular, reúne-se a pessoas com ideias e desejos semelhantes - e dá uma banana aos deuses em fajutos pedestais. Um museu, em especial dedicado à arte moderna e contemporânea, precisa guiar-se por esses parâmetros sociais e valorativos vigentes na 3a década do século XXI. E nos últimos anos, a nova direção do MAM tem correspondido cada vez mais a esses preceitos.

O que vem ocorrendo no MAM demonstra que, ao contrário do que muitos creem, aproximar-se do público nada tem a ver com rebaixar o nível das atividades, muito menos abdicar da missão formativa e do status referencial do museu. Isso fica claro em Estado Bruto, onde, por mais flexíveis e propositivos que sejam os critérios da mostra, há um elaborado pensamento na seleção de obras, na separação e disposição por diferentes espaços e mesas e na correlação estabelecida para as peças. Nada é aleatório, nem voltado ao simples gozo visual. Em cada opção subjazem dimensões pedagógicas, fruitivas, educativas.

Vemos assim, lado a lado, criações como Integração, de Paiva Brasil, a cerâmica A Mãe, de Antonio Poteiro e os Asteroides, de Wilson Piran. Diferentes matérias estão presentes nessa interação: a madeira, o barro e o acrílico. À natureza de uns se contrapõe a artificialidade do outro. À transparência dos Asteroides se opõe a opacidade das demais. O rigor da ortogonia de raízes Concretistas é contraposto pela organicidade manual. Entre formas artificiais está uma essencialmente biológica, impregnada de valores, mas transfigurada pelo mundo interior do artista. À tese da indústria se amalgama a antítese inevitável da vida.

Obras de Paiva Brasil - Antonio Poteiro - Wilson Pirani

Em outra estante, a dimensão humana do amor e do erotismo marca presença com Ondine, de Henri Laurens, Reino Distante, de Márcia X, Baú de Palavras, de Rosana Ricalde e um bronze sem título, de Tunga. O desejo pela posse da matéria lida com a intangibilidade e uma fusão impossível, com pensamentos ocultos e a presença do desconhecido, do inclassificável. São obras de linguagens conflitantes, reunidas por uma complementaridade necessária.

Obras de Marcia X - Rosana Ricalde - Henri Laurens

É uma delícia viver esses dias em que obras como Mão de Guerreiro, de Bourdelle, Mademoiselle Pogany, de Brancusi e Icosaedro, de Felipe Barbosa são postas lado a lado. Em um diálogo assim, hierarquias e autoridades se desdizem, se diluem, como nas conversas dos habitantes da cidade maravilhosa que abriga esse precioso museu, renovado por preciosos ares.

Obras de Brancusi - Felipe Barbosa - Antoine Bourdelle

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