sábado, 4 de dezembro de 2010

Praça Mauá - Impressões e História



Vista aérea. Ilha das Cobras, Pier Mauá e o Porto

Quem atravessa a Avenida Presidente Vargas e segue pela Rio Branco partindo do Largo da Carioca ou das imediações da Uruguaiana assiste a uma transformação urbana inusitada. Passada a aglomeração típica do grande centro, surge aos poucos, emoldurada por grandes prédios e copas de árvores, uma fresta tímida de horizonte azul. O movimento de pedestres também diminui e nas esquinas com Teófilo Otoni e Visconde de Inhaúma começam a ser vistas reminiscências da era Pereira Passos. Para a imaginação resta apenas a dolorosa tarefa de recriar uma continuidade histórica com a distante Cinelândia.

Livraria da Travessa

Mais à frente, ainda perturbadas pelo barulho de carros, ônibus e caminhões, as calçadas tornam-se livres à circulação. O pequeno comércio aparece nas ruas secundárias e algumas residências despontam nos arredores, sombreadas pelos edifícios Rio Branco 1 e "A Noite".
Pela minúscula Dom Gerardo a centenária Primeiro de Março e seu estranho prolongamento despejam nesse trecho em mão dupla da avenida um tráfego contínuo de ônibus que recobre com grossas camadas de pó os muros do oculto conjunto de São Bento. Saídos do beco poluído, os veículos juntam-se ao trânsito já congestionado para dar origem ao fenômeno mais curioso do centro carioca: Durante a troca de sinais todo o fluxo de automóveis é interrompido para uns poucos pedestres, fazendo com que a avenida desfrute momentos de estranho bucolismo.


Sinal fechado na Avenida Rio Branco

Na última etapa desse breve percurso nos deparamos com o surpreendente contraste de escalas antiga e contemporânea da Praça Mauá. Espremido contra o modernismo decorado do imenso edifício Rio Branco 1 e as ameaças de um horroroso viaduto, o velho Arsenal da Marinha perde-se num emaranhado viário como sobra desprezada da malha urbana. A escultura de Mauá, removida de sua posição original, já não provoca o impacto imaginado por Bernardelli. Solta em meio à praça, rebaixada de categoria, deixou há muito de demarcar o início da Avenida. Apesar disso, com algum esforço e boa vontade, ainda é possível encontrar ângulos que não a diminuam sob a sombra dos arranha-céus ou do abandono que aos poucos consome a antiga Inspetoria Geral dos Portos.
Dominando a praça, o edifício "A Noite" nos lembra os anos de glória da região, quando artistas, empresários e políticos eram atraídos pela vida em torno de multinacionais, agências de notícias, consulados e, principalmente, da Rádio Nacional.

Os Edifícios Rio Branco 1, "A Noite" e a escultura do Barão de Mauá por Rodolpho Bernardelli

A Praça Mauá vive momentos de expectativa. Sua função de articular a zona portuária com o núcleo urbano sofreu duro revés a partir de uma sucessão de impactos econômicos mal assimilados. Enquanto a cidade expandia-se para as zonas sul e oeste, descentralizando seu fluxo de capitais, a concorrência com os portos de Santos e, mais recentemente, de Sepetiba, além da mudança da capital para Brasília, reduziam a importância da região. Foram-se as empresas, o dinheiro e o poder. Sobraram projetos e promessas.
Essa parte da cidade já não atrai mais seus habitantes. Mal-cuidada, caiu aos poucos no esquecimento da população e perdeu os aspectos vivos de sua história. Hoje seus únicos frequentadores são os turistas de cruzeiros que se reúnem para embarque ou esperam transporte para a zona sul. A maioria prefere as praias à rica memória do bairro. Afinal, quem ganha a concorrência: velhos mosteiros ou uma tarde à beira mar ?


A Praça Mauá e sua História

A região onde se localiza a atual Praça Mauá é ocupada desde os primórdios da cidade. Os relatos e documentos mais antigos se referem ao brejo situado entre os morros da Conceição e São Bento como 'Prainha' e remontam ao ano de 1575, época em que seu proprietário, Manoel de Brito, iniciava a drenagem do terreno para estabelecer uma chácara. Quando morreu, uma capela erguida no cume do atual morro de São Bento e dedicada a Nossa Senhora da Conceição foi entregue a religiosos da ordem Beneditina, que mudaram o culto pelo de Nossa Senhora de Montserrat. Os antigos devotos trataram logo de reedificar a capela no morro em frente, pertencente a uma fiel chamada Maria Dantas, estabelecendo-se assim o nome de Morro da Conceição. No século seguinte, a esta primeira construção seguiriam-se as do futuro Palácio Episcopal e a de uma fortaleza militar.
Durante o séc. XVII os Beneditinos expandiram suas posses. Da Ilha das Cobras extraíam madeira, mantimentos e do morro situado nas terras recém-adquiridas na Praia do Sapateiro - atual Morro da Viúva, no Flamengo - as pedras usadas na construção do Mosteiro. Os limites originais das propriedades atingiam as atuais ruas do Acre e Visconde de Inhaúma. Em fins do séc. XVII, entretanto, a Ilha das Cobras passaria à administração militar, mantendo até nossos dias sua importância como centro tecnológico da Marinha.
Vários fatos marcaram o conjunto do Mosteiro de São Bento ao longo da história. Um levante popular contra a cobrança de impostos na década de 1660 terminou com o cerco ao Governador Tomé Correa de Alvarenga, refugiado no morro, e a consequente decapitação do líder revoltoso, Jerônimo Barbalho. Lá também foram instalados canhões em 1711 na tentativa de derrotar a frota do invasor Duguay-Trouin. A resposta dos franceses à resistência causou profundos danos ao Mosteiro e o saque que se seguiu resultou numa grande perda em peças cerimoniais. Como se já não bastassem os infortúnios, em 1732 um religioso descuidou-se da chama que iluminava seu dormitório e provocou enorme incêndio que atingiu parte das instalações. Por sorte salvaram-se os arquivos e a biblioteca.

Altar-mor da Igreja do Mosteiro de São Bento
(fotografia do livro "Igrejas do Brasil", de G. Oscar Campiglia)

No início do séc. XVIII o Morro da Conceição ganhou uma fortaleza para a defesa da cidade. O plano também previa a construção de um muro até o morro do Castelo, mas não foi adiante. A fortaleza foi transformada em fábrica de armas e, a partir de 1733, o sopé do morro recebeu o Aljube, uma cadeia eclesiástica que, no século seguinte, já tranformada em casa de detenção pública, atrairia a atenção por suas condições sub-humanas. Os condenados eram mantidos pela caridade da população, uma vez que não recebiam qualquer amparo das autoridades - sequer alimentos - e de lá partiam rumo à forca, que seria instalada na própria Prainha na época da execução dos envolvidos na Confederação do Equador, em 1825.
Com a chegada da Família Real, em 1808, o Rio de Janeiro desfrutou um ciclo de grande desenvolvimento. A continuidade do mosteiro de São Bento, no entanto ,esteve em risco. Diz a lenda que D. João VI desejava transformar o prédio num palácio real. A desistência teria sido motivada por um monge que, sabedor da pouca coragem do soberano, narrou-lhe com doses exageradas os pavores causados por raios e trovoadas no cume do morro durante terríveis noites de tempestade.  Dom João não tomou posse do mosteiro, mas a edificação, mesmo assim, acabou ocupada por nobres e batalhões. Após a independência, a ocupação militar voltaria a ocorrer.

 
O Porto do Rio de Janeiro em 1861 
(Extraído de uma gravura de Thomas Ender)

Em 1858 os Beneditinos fundaram o renomado Colégio São Bento. O último capítulo do histórico de conflitos envolvendo o Mosteiro se deu no crepúsculo do século XIX, durante a Revolta da Armada. O prédio, cercado por baterias militares, acabou alvo dos tiros de marinheiros rebelados contra o governo Floriano Peixoto.


Reflexos da Industrialização - de Prainha a Praça Mauá

Com o Ciclo do Café houve um forte impulso à indústria, economia e imigração européia. A região recebeu sua linha férrea, que incrementou o fluxo de mercadorias e pessoas e sua área foi alargada por aterros, ganhando os contornos de uma verdadeira zona portuária. Em meados do século XIX surge também a personalidade de Irineu Evangelista de Souza, Barão de Mauá. Uma de suas realizações foi a implantação da estrada de ferro Rio-Petrópolis. A viagem começava em barcas do porto, que atracavam em paradas do outro lado da baía, onde se localizava uma estação ferroviária. Já na serra os passageiros saltavam dos trens e seguiam para seus destinos em transportes individuais. A ligação direta entre as cidades só ficaria pronta em 1888, quando Mauá já havia falido e o trajeto sido concedido à administração inglesa.  
Na década de 1870 as instalações de um grande trapiche, chamado então Trapiche Mauá, passaram a abrigar a Companhia de Carris Urbanos, responsável pelo transporte público em bondes puxados a burro. Fato curioso ocorreu em fins dos 1880, com a tentativa malograda do poder público de comemorar a Lei do Ventre Livre ao rebatizar a tradicional Prainha. O nome 'Largo 28 de Setembro' foi rejeitado pela população, que não aderiu à iniciativa.
A grande transformação da Zona Portuária ocorreu na primeira década do séc. XX, durante a gestão do Presidente Rodrigues Alves e do Prefeito Francisco Pereira Passos. Conhecidos pelas obras de abertura da Av. Central, atual Rio Branco, os governantes também foram responsáveis por várias outras melhorias que marcaram definitivamente a cidade, entre as quais a abertura das Avenidas Beira-Mar e Atlântica, o alargamento das ruas da Assembléia, Carioca e Marechal Floriano, a contenção e urbanização do Canal do Mangue e o início da total remodelação da zona portuária, que tornou-se integrada à malha urbana por uma grande Praça, largas ruas e infra-estrutura avançada. Graças à atuação de Lauro Müller, Ministro de Obras Públicas, o Morro do Senado, situado nas imediações da Praça da República, foi arrasado e sua terra empregada no alargamento da região, determinando, assim, o fim da antiga Prainha.

 
Planta das Intervenções dos governos Rodrigues Alves e Pereira Passos (1906)
Traçado da nova Avenida Central e do aterro na região portuária.
(Extraída do Álbum da Avenida Central, de Marc Ferrez)

Essa remodelação do porto veio atender às necessidades de ancoragem para grandes navios e armazenamento adequado de mercadorias. Passados inúmeros contratempos, foi inaugurado em 1905 o primeiro trecho do Porto, com 500 metros de extensão. Em 1908 foi concluída sua expansão, atingindo 1900 metros de comprimento. Na década de 1910 foi inaugurado o edifício da Inspetoria Federal de Portos no centro daquela que passara a ser conhecida como Praça Mauá. As características do terreno, encharcado e sedimentar, dificultaram o estaqueamento de suas fundações, instaladas a uma profundidade de 18 metros.

 
A coluna, marco inicial da Avenida Central, ainda sem a escultura de Mauá, 
de autoria de Rodolpho Bernardelli  
(Cartão Postal de 1910)

Para acolher os visitantes numa época em que se incrementavam as atividades turísticas, a Praça Mauá acompanhou a moda e recebeu paisagismo em estilo Belle-Époque. Transatlânticos aportavam na cidade trazendo personalidades políticas e culturais e a cada anúncio de chegada os habitantes afluíam à região para lhes dar boas-vindas e utilizar os serviços de bordo oferecidos ao público abastado. Lá também desembarcavam, após triagem na pequena Ilha das Flores, os imigrantes vindos da velha Europa, tão importantes para o desenvolvimento econômico e cultural da nação. Foi lá também onde aconteceram as antigas manifestações operárias do Primeiro de Maio influenciadas pelos movimentos comunista e anarquista, proibidas durante o Estado Novo. A concentração de operários caracterizava a ocupação habitacional das imediações e atraía iniciativas assistenciais como a Missão dos Marinheiros, mais tarde incorporada pelo Instituto Central do Povo, mantido por religiosos Metodistas. No porto também embarcaram os soldados brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial e foram recebidos representantes de Estado como Eva Perón e o Presidente Roosevelt.

 
Edifício da Antiga Inspetoria de Portos, atual Palácio Dom João VI 
(Fotografia de Augusto Malta, 1920)

O trecho da Av. Central, atual Rio Branco, voltado para a Praça Mauá, assistiu ao despontar de um curioso prédio em estilo neogótico, pertencente ao conjunto Beneditino. Conhecido como Casa Mauá e erguido em frente à escultura do famoso industrial, o projeto do arquiteto Gastão Bahiana transformou-se num grande grupo de salas comerciais e escritórios. Sua duração atingiu os anos 1980, quando foi substituído pelo atual Edifício Rio Branco 1.

 
À esquerda a Casa Mauá, num Cartão Postal de 1915

 
Panorama da Praça Mauá em 1925

Em 1928 outro marco estabeleceu-se na região. O antigo Liceu Literário Português deu espaço a um edifício com 22 pavimentos e estrutura em concreto armado, projetado para o Jornal "A Noite" pelo francês Joseph Gire, autor do hotel Copacabana Palace e Palácio Laranjeiras. Emílio Baumgarten, seu calculista estrutural, trabalharia anos depois nos cálculos para o edifício do Ministério da Educação. A empreitada foi além das possibilidades do proprietário do jornal, que o vendeu para outro investidor. Em seus andares estabeleceram-se sedes de empresas como Philips e PanAm, as agências de notícias La Prensa e United Press Association e os consulados dos Estados Unidos e Canadá, além dos estúdios da antiga Rádio Nacional, famosa pela produção de novelas e divulgação de artistas nacionais. Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Marlene, Cauby Peixoto e Radamés Gnatalli serão eternamente associados à época em que o prédio era foco de uma vida alegre e boêmia.

Edifício "A Noite" em construção, 1928 
(Fotografia extraída do livro "Rio de Janeiro 1900-1930", de George Ermakoff)


Vista aérea do Edifício "A Noite", de 1930
(Extraída do livro "Rio de Janeiro 1900-1930", de George Ermakoff)

Em 1950 foi construída a Rodoviária Mariano Procópio no andar térreo do prédio da Polícia Maritma. A Praça era tradicional ponto de chegada dos ônibus interestaduais, que substituiam aos poucos o transporte ferroviário. Com o aumento do fluxo de veículos, a Avenida Rio Branco perdeu seu canteiro central e a coluna encimada pela escultura de Visconde de Mauá, de autoria de Rodolfo Bernardelli, foi removida para o centro da Praça. Nas décadas seguintes outras remodelações fariam a escultura ser realocada mais uma vez.
A região portuária continuou a passar por grandes mudanças. Logo após a Segunda Guerra Mundial surgiu o projeto para a construção de um grande pier com edificação destinada aos serviços de cargas e passageiros. Somente o píer seria inaugurado, sem qualquer ocupação, contando apenas com guindastes e acesso à linha férrea. Outra transformação foi a implantação de um viaduto, que passou a cruzar toda a região, provocando resultados bastante negativos para o paisagismo e prejuízos para a qualidade de vida local. Importante para o tráfego urbano, a novidade tornou a área irreconhecível. Degradada, mal frequentada, a Praça Mauá entrou em decadência.  

 
Construção do Viaduto da Perimetral. Fotografia da década de 1960

No alvorecer do séc. XXI surgiu a primeira idéia de envergadura para a revitalização da área. Um museu filiado à rede Guggenheim seria erguido no abandonado Pier Mauá e teria função de âncora para empreendimentos imobiliários particulares. Disputas políticas inviabilizaram o projeto e em pouco tempo o assunto caiu no esquecimento. Uma nova promessa, agora sob o nome "Porto Maravilha", começa a sair do papel. Trata-se de uma grande remodelação urbanística que reabrirá o antigo edifício da Inspetoria de Portos - atual Palácio Dom João VI - como sede da Pinacoteca do Rio, reestruturará o tráfego de veículos e fomentará novos projetos arquitetônicos e de restauro, abrangendo também o histórico Morro da Conceição. O coroamento do projeto foi previsto para o abandonado Píer Mauá. O desenho de um museu elaborado por Santiago Calatrava conquistou a simpatia da população e começa a sair do papel.
Mal frequentada, esquecida pela população e desprezada durante décadas pela administração pública, a região portuária do Rio de Janeiro volta a despertar o interesse dos governantes. Numa ironia da História, os projetos elaborados agora espelham-se nas receitas do passado e, para reavivar o espírito do local, a aposta prevê inclusive o retorno do mar como importante rota de chegada à cidade. Os planos abrangem atividades culturais para revitalizar os arredores e um dia, quem sabe, recobrar a efervescência do tempo em que o antigo Edifício "A Noite" era palco da tão lembrada vida alegre e boêmia. O próximo capítulo da histórica Praça Mauá começou a ser escrito.

Um comentário:

marchamp disse...

Excelente documento histórico