domingo, 20 de fevereiro de 2022

A Afirmação Modernista no Paço Imperial

Entre as décadas de 1930 e 1970, a consolidação das instituições públicas do país esteve acompanhada por iniciativas de fomento à arte. Pintores e escultores eram contratados para executar painéis em edifícios, telas e esculturas eram adquiridas para acervos, exposições e premiações eram organizadas. Assim, diante do tímido mercado interno, o Estado aparecia como um dos pilares econômicos da produção nacional. Essas iniciativas, porém, não eram contínuas e nem sempre atendiam a critérios muito claros. Não raro eram coordenadas por artistas que figuravam entre os próprios servidores das instituições, e que colaboravam, a seu modo, com o empreendimento.

Com o redirecionamento econômico a partir dos anos 90, vários desses órgãos estatais foram privatizados e deixaram como legado seus acervos. Um deles é o pertencente ao antigo Banerj, atualmente mantido pela Funarj e selecionado para a mostra A Afirmação Modernista, no Paço Imperial.

Quem frequenta o circuito cultural do Rio de Janeiro reconhecerá alguns dos destaques. As telas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, Emeric Mercier e Manabu Mabe estiveram ainda há pouco em outras mostras, no BNDES e CCBB. Mas o que torna especial A Afirmação Modernista não é propriamente uma ou outra obra, e sim a possibilidade de se conferir esse acervo em um só lugar. Desse modo, além de apreciar telas e gravuras, o visitante pode confrontá-las entre si, frente ao conjunto, questionar as escolhas de aquisição do banco - enfim, uma oportunidade que tão cedo não deverá se repetir.

Eugenio Sigaud comércio rua exposição afirmação modernista paço imperial
Eugênio Sigaud - A Escultura do Comércio e a Rua, 1942

Vemos, por exemplo, um Eugênio Sigaud da década de 1940, sua melhor fase. Por uma perspectiva derivada do expressionismo e da vanguarda russa, a cidade surge como palco de transformações econômicas e sociais. Aos pés de Mercúrio, deus do comércio, velhas práticas humanas convivem com os símbolos da era industrial. Sigaud subtrai a natureza, mantem cores em tons baixos, expondo sua visão crítica dos novos tempos. Mas não abandona a esperança, aludida por pombas que cruzam, quase imperceptíveis, a cena.

Di Cavalcanti - Brasil em quatro fases coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Di Cavalcanti - Brasil em Quatro Fases, 1965

Seguindo em frente, os quatro grandes painéis de Di Cavalcanti sobre períodos da História nacional dão testemunho da manutenção de verve cultural e antropológica do artista. Aqui não estamos diante de questionamentos ou inquietações. O mais importante é a sobrevivência de Di à recusa em ingressar nas correntes geométricas e abstratas da década de 1950. As figuras, delineadas, são bem distintas das que um dia caracterizaram seu trabalho. Culminam em certo efeito decorativo, onde se notam maneirismos à la Matisse, Léger e da arte dos vitrais.

Isabel Pons - Poblet 1965 exposição afirmação modernista coleção banerj
Isabel Pons - Poblet, 1965

Na sala dedicada a obras gráficas, uma curiosa água tinta de Isabel Pons composta por blocos agregados evoca uma estrutura de grandes dimensões. Um confronto proveitoso pode ser feito com dois óleos de Henrique Cavalleiro, que demonstram assimilações Cézanneanas. Um deles, de uma paisagem com montanhas, está quase liberto do referencial temático, produto que é do flerte com uma linguagem de anseios mais puros e autônomos. Comparação mais sutil pode ser feita então com uma obra de Alvim Menge. Esse pintor pouco lembrado legou obras de interesse também iconográfico e está representado por uma paisagem de Copacabana que em muito corresponde às de Manoel Santiago, seja nas dimensões, seja na paleta ou pinceladas.

Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas 1926 coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas, 1926

Alvim Menge - Copacabana coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Alvim Menge - Copacabana, início Séc.XX

Mas nem só de século XX se constitui a coleção Banerj. Há, por exemplo, além de um variado conjunto de gravuras da época do Império, um luminoso óleo de Benno Treidler e uma intrigante composição de Estevão Silva com objetos de caça. Nessa, a fuga da obviedade na disposição dos elementos faz com que, mesmo tendo sido pintada em 1889, se irmane em espírito às experiências da abstração.

Benno Treidler - rio de janeiro coleção banerj
Benno Treidler - Entrada da Barra do Rio de Janeiro


Estevão Silva - Caça - pintores negros brasileiros coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Estevão Silva - Caça, 1889

A mostra segue com obras de Pancetti, Anita Malfatti, Burle Marx, Eliseu Visconti, Fayga Ostrower, Carybé e tantos nomes de vulto que, por si, encheriam vários artigos. Mas encerremos com um dos temas que subjazem à exposição: o critério de aquisição das obras pelo antigo banco.
Acervos como o do Banerj são, sem dúvida, fruto de preferências dos que os constituíram. José Paulo Moreira da Fonseca, artista, advogado da instituição e um dos responsáveis pela seleção das obras, era tido como pouco afeito às correntes Concreta, Neoconcreta e demais manifestações surgidas a partir da segunda metade dos anos 60. 
Isso explicaria a falta de representatividade dessas vertentes no acervo?
A resposta não é tão simples. A escolha de obras para uma instituição pública impõe a conciliação entre verbas, prazos, artistas e obras disponíveis. Cada instituição possui características próprias, sejam relativas à estrutura de gestão e funcionamento, sejam relacionadas aos espaços a serem ocupados e seus ocupantes. Cada instituição presta-se a uma finalidade específica e está implementada em uma concepção arquitetônica específica, o que resulta em uma identidade própria e em condições e razões próprias para a seleção das obras. Para esse cenário também concorrem vozes alheias ao mundo da arte, como simpatias e gosto de diretores, dos que os indicaram e de demais funcionários.
O acervo de um banco estatal não tem pretensões museológicas e também nada indica que, sem a privatização, as lacunas do conjunto não teriam sido sanadas. Para compensar as ausências, pode-se argumentar que alguns artistas presentes tiveram sua rara oportunidade de figurar em uma coleção pública e os não representados já figuravam no acervo de outras instituições.
No fim, essas considerações pouco importam. Se a coleção Banerj apresenta lacunas, por outro lado não peca pela escassez de obras nem por dúvidas quanto a sua qualidade.


Nenhum comentário: