quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Xilogravuras de Lucie Schreiner




Muito se pode esperar da crescente produção de Lucie Schreiner. Cada uma de suas gravuras aborda uma dimensão do fascínio e oferece parâmetros próprios de fruição. Vistas em conjunto, são capazes de reter por horas o olhar. Nessas composições intrincadas, verdadeiros mundos em miniatura, componentes se entrelaçam, numa intensa simbiose. A elementos biomórficos se unem correntes, laços e engrenagens. Equipamentos eletrônicos e científicos concorrem para instaurar realidades paralelas, fundadas em leis próprias.

Lucie trabalha a partir de uma leitura pessoal da técnica da xilogravura. Em sua abordagem, a forma, comumente tratada em planos, adquire volume pelo emprego de diferentes linhas e texturas. O olhar atento logo percebe que as impressões também são desprovidas dos esperados veios de madeira. Isso ocorre porque a artista dispensa a matéria-prima natural e lança mão de placas de mdf, homogêneas, industrializadas. Desse modo, além das peculiaridades formais e temáticas, é acrescida uma nova camada, evolutiva, à tradição.

Seria errada qualquer objeção nostálgica a esse processo de fatura. Se o uso de placas de madeira evoluiu, historicamente, para chapas de cobre e corrosivos, o emprego de contraplacados e mdf, bem como de quaisquer materiais novos ou alternativos, existentes ou que se venham a inventar, deve ser tido como decorrência da prática do entalhe. A arte evolui nas formas tanto quanto pelos meios consecutivos e há mais de um século essa irrevogável liberdade de proposição foi conquistada pelos artistas.

Nas gravuras de Lucie, a estrutura despretensiosa induz o olhar ao universo dos detalhes. As dimensões e proporções dos elementos seguem uma lógica ditada pelo sentimento e empiria, muito mais do que por rigores geométricos ou correspondências com a realidade. Prevalecem o ritmo, a sequência, a apreensão das articulações em contínuo. À composição, por vezes estática, se contrapõe um movimentadíssimo campo de eventos internos. Figuras se repetem, mas nunca exatamente, mantendo a criação isenta da padronização e reafirmando a abundância assentada na heterogeneidade.

Não é por acaso que essas obras mantêm analogias com mundos. A arte, livre e descomprometida, bebe em fontes diversas, tirando proveito de paralelismos. E Lucie aborda, na atenção aos seres, máquinas, relevos e estruturas, preceitos análogos aos da Geografia, matéria de sua formação. É claro que não se trata aqui de etnografia, nem do inventário de propriedades naturais. Trata-se, em vez disso, de equivalências, que convergem pelo interesse pessoal da artista. Analogias apontam semelhanças entre processos, preservando as distintas naturezas dos objetos em comparação. Por isso, alusões diretas surgidas aqui e ali, os globos, termômetros, medidores e instrumentos científicos, servem para estabelecer contexto e parâmetros à fantasia. O resultado é, por isso, análogo ao mundo em que vivemos, onde se operam a fusão entre seres vivos e tecnologia e a multiplicação de pormenores hiperlativizados.

Da arte pura a pequenos ex-libris, Lucie Schreiner atende a própósitos vários com igual inventividade. O olho percorre as composições, descobrindo reminiscências minerais, tecnológicas e heráldicas, recontextualizadas sob o mesmo espírito criativo. A natureza é relida, seres tornam-se híbridos de mecanismos e a História é sincreticamente revisitada.

Em pouco tempo, a artista partiu de uma concepção narrativa e percorreu antigos referenciais da gravura para atingir uma exuberância que transcende o caráter descritivo. Suas composições iniciais, de temática singela e estruturadas em sobreposições, deram lugar à interação dimensional das formas. No percurso, composições passaram a se justificar cada vez mais por si, garantindo independência de associações textuais e culminando no atual desenvolvimento da artista, cujas bases técnicas e criativas estão consolidadas.


2 comentários:

lizglass disse...

Obrigada por esse texto que ilumina o trabalho dessa jovem artista que conheci e acompanho no FB. Muitas vezes a crítica de arte se transforma em exercício esotérico e nombrilista. Ao contrário, seu comentário contribui para desvendar o processo e o contexto da artista e enriquece minha experiencia do olhar sua obra. Vou virar leitora de seu blog!

Roberto Ormond disse...

Obrigado, Liz. É uma satisfação divulgar a produção brasileira. Busco sempre contextualizar as obras de modo a contribuir para a fruição. Um abraço!