quinta-feira, 31 de março de 2022

Arte para além da bolha

Quem quer que saia da bolha e acompanhe o que, de fato, há na atual produção de arte, percebe que vivemos um período de múltiplos ecletismos. Já não se pode dizer nem mesmo que grandes projetos - estilísticos, ideológicos, de linguagem, os ismos - morreram, porque a própria ideia de um projeto para a arte está sepultada. O artista de hoje segue objetivos e processos criativos próprios, dá continuidade a vertentes que julga passíveis de exploração. Ao lado dos NFTs, a pintura tradicional, de cenas e retratos, continua seu rumo pelas mãos de pintores independentes ou agremiados em sociedades mantenedoras de antigos gêneros. Obras tridimensionais, derivadas das instalações e assemblages, performances, propostas sonoras, olfativas, táteis - tudo isso convive com a velha prática de figuras e bustos em bronze e mármore. O fim da História, o fim da beleza, o fim da Arte, o fim disso, daquilo - o tempo dos manifestos e declarações impactantes ficou para trás e as incursões por esse terreno soam demodées, merecendo, no máximo, uma condescendente risada.

Roberto Ferri - Prisão de Lágrimas
óleo sore tela, 40 x 60 cm

As coisas tomaram orientação mais aberta e, hoje, por mais que alguém prefira linguagens novas, dificilmente deixará de reconhecer o valor de um Roberto Ferri, por exemplo. Há duas décadas nomes como Ai Weiwei, Ron Mueck, Anish Kapoor e Olafur Eliasson arrebanham multidões para mostras de circuito internacional sem que os ataques dos que desprezam a arte contemporânea surtam qualquer efeito. Tampouco importa o intelectualismo dos que desdenham do gosto do público e de artistas populares como esses. Vaticinar que não representam a arte contemporânea, que lhes falta conteúdo, qualquer que seja, que tal ou qual obra atenta contra a moral e os bons costumes, que a produção atual é um lixo - tudo isso encontra ressonância apenas em nichos sectários.

Olafur Eliasson - The Weather Project, 2004

Esse processo de diversificação ocorreu sem dúvidas por razões econômicas, afinal oferta e demanda se atendem. Mas o fetiche economicista ficou igualmente para trás, dando espaço a outras visões, tão ou mais importantes para a compreensão de fenômenos históricos e culturais. No que se refere ao cenário de artes, um dos fatores é o descrédito em que caíram os críticos e historiadores. Basta ler textos de exposições para se atestar que os primeiros perdem-se facilmente em uma linguagem confusa, repleta de jargões. Ler esses textos é ter a impressão que podem significar qualquer coisa, ou absolutamente nada. Já os historiadores abraçam grandes construções, de belíssima envergadura, mas que em grande parte se sustentam pelo que deixam de fora. Histórias da Arte devem ser vistas como a exposição de uma linha geral de contexto e criação, não como autoridades eliminadoras de autores e obras. Histórias da Arte são essenciais, tanto quanto é essencial deixá-las de lado para se entender, de fato, o que é a Arte, que se encontra em obras, não na História.

À já conhecida democratização do acesso à informação pela internet segue-se o declínio dos órgãos de imprensa, que abdicaram das seções culturais. O jornalismo de hoje contenta-se com a disputa política, com a derrubada ou defesa de nomes e, quando abordada, a arte é quase sempre diminuída, rebaixada ao entretenimento e lugar-comum, quando não confundida com a indústria cultural. Nas raras ocasiões em que lhe é concedida abordagem mais específica, a exiguidade de espaço impede o desenvolvimento de análises. Ler jornais hoje é se perguntar se seriam possíveis fenômenos da crítica como Robert Hughes, Brian Sewell, Michael Gibson, Mario Pedrosa - e saber de antemão que a resposta é negativa. Críticos hoje se fazem por meios próprios, não estão mais em uma relação de agregação de valores com veículos de comunicação. Isso é lamentável pois a falta de projeção de vozes contribui para a manutenção de bolhas de pensamento, inclusive a dos próprios críticos, que acabam aprofundados no especialismo, cada vez mais distantes do público.

Acompanhar a produção de arte hoje é tarefa individual e personalizada. É eleger os próprios referenciais, seguir perfis de artistas no instagram, páginas de revistas e galerias, fazer pesquisas online, ler análises e comentários independentes. E, claro, frequentar o circuito de exposições. Essas práticas, quando não cerceadas por ditames ideológicos, levam à descoberta e ao cultivo do trabalho de uma plêiade artistas que seguem as mais variadas tendências e linguagens. Levam a novas leituras e novos julgamentos para demais âmbitos da sociedade e também a possibilidades, novas e esquecidas, para a vida. E levam sobretudo à desconsideração dos que se arvoram ao proclamar o fim da arte, o fim da História, o fim da beleza, disso ou daquilo. Slogans são deformadores da realidade. São um condensado de ideias previamente selecionadas com o objetivo de limitar a visão e compreensão dos fatos. Os que abandonam a bolha entram em contato com um universo rico, em que as conquistas e interesses humanos coexistem de formas múltiplas e complementares.

Paulo Vivacqua - Nympheas, 2015
Vidro, espelho, alto-falantes e amplificadores


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