quarta-feira, 17 de abril de 2019

Flora Morgan-Snell: Pintora, Artista, Brasileira


Flora Morgan-Snell é uma artista esquecida. Seu nome não consta na história de nossa arte. Suas obras são ignoradas no Brasil. Pintora e escultora de orientação livre, colecionadora de prêmios como o Léonard de Vinci, do Salão de Arte Livre de Paris e de Escultura da Grécia, expositora em galerias como a Bernheim Jeune e no Museu de Arte Moderna da França, participante de eventos da UNESCO e organizadora de exposições de artistas contemporâneos brasileiros e estrangeiros na Europa, Flora não merece o ostracismo a que foi relegada.

Nascida em 1920, em São Paulo, a artista cresceu em Petrópolis e logo revelou a natureza autodidata. O interesse pelo corpo humano a levou aos livros de anatomia e a assistir campeonatos de luta, onde testemunhava a força e o movimento que abordaria em seu trabalho. Ao buscar estudo formal no Rio de Janeiro, a jovem acabou dispensada do curso. O motivo? Não havia mais nada que o professor pudesse lhe ensinar. Com 25 anos, participou de duas exposições na antiga capital federal e casou-se com Albert de Moustier, descendente da aristocracia francesa.

Com a união, Flora mudou-se para Paris, onde estabeleceu a imagem a que seria associada: pintando na mansão familiar, em meio a aves que criava, soltas, entre as obras. Vivia cercada de glamour. O nome real, de batismo, era Maria Angelina. Mas Flora, homenagem à deusa romana, agregava ainda mais encanto a sua personalidade. De elegância ímpar, a agora também Condessa de Moustier vinha com frequência ao Brasil, onde se destacava em eventos sociais e acabava nas colunas de jornal, como a de Ibrahim Sued, pelas homenagens recebidas mundo afora.

Em paralelo ao glamour, havia, porém, as circunstâncias do métier. Flora trabalhava em um meio dominado por homens e, sob muitos aspectos, averso à liberdade. Alguns episódios dão a dimensão de como sua presença era percebida nesse universo. Durante um concurso, o Grand Prix Léonard de Vinci, os jurados chegaram a imaginar que as obras eram, na verdade, de seu marido. Situação parecida ocorreu em 1959, quando, ao propor um monumento para Brasília, a obra acabou tida como trabalho masculino, dada a virilidade das figuras. No Brasil, a independência, seu grande trunfo, era justamente o que a condenava. Além de aristocrática e rica, Flora levava adiante a tradição figurativa, o que a afastava definitivamente das correntes predominantes no cenário nacional. Mas não dependia da crítica nem da venda de telas para sobreviver. Era bem relacionada. Criava para si e para os que a admiravam, atendendo encomendas particulares, institucionais e do Estado francês. Seguia aquilo em que acreditava, pintando a partir do que as obras significavam, representavam e proporcionavam, enquanto arte.

A  Pintura

Permeada de simbolismo, a pintura de Flora é baseada em uma fusão entre presente, passado e futuro. Sua concepção monumental, geralmente em painéis, potencializa a visão grandiosa e otimista que a artista nutria da modernidade. Para ela, essa fase histórica significava não uma ruptura, conforme a visão tradicional, mas uma elevação do status ontológico humano. A ascensão à nova era transcendia culturas, reunificava a espécie, realizando o pressuposto universalista moderno.

As diferença entre indivíduos são, por isso, reduzidas a um mínimo de atributos. Homens e mulheres não pertencem a classes ou raças. São miscigenados. Abstraídos de origem, simbolizam a potência vital em toda sua plenitude.

Essa pintura oferece uma antítese à visão atual, relativista e identitária, da pós-modernidade. Diante de sua concepção valorativa, o observador compreende a si como parte da epopeia humana e vislumbra um sentido para a vida que transcende sua própria existência. Nesse sentido, é preciso que as palavras da artista sejam compreendidas nos termos adequados. Flora dizia que fazia pintura brasileira. Basta olhar a iluminação das cenas; basta olhar os cabelos, as feições, a tez bronzeada, para encontrar nessas obras a atmosfera e os tipos nacionais. Em suas telas não há cenas de conflitos nem guerras, muito menos reabertura de antigas feridas, que julgava superadas. É sobre o pressuposto de um reencontro para a concórdia final que desenvolvia o pensamento. A fusão das raças, tal qual ocorrida no Brasil, participa, assim, da consecução da grandeza majestática reservada à humanidade.

No aspecto formal das obras, é o tratamento dado aos sucessivos planos que confere monumentalidade às composições. Linhas retas e curvas cruzam a tela entre as figuras, unificando eventos e dramatizando o espaço. Dominadas pelo forte desenho, as formas se desenvolvem em campos preenchidos por transições cromáticas que estabelecem volumes. A disposição das figuras e demais elementos em sequências de cheios e vazios concorre para o acentuado jogo de gesto e força, movimento e estaticidade. Ainda que haja hipertrofia dos corpos, predomina uma atenção honesta à musculatura, o que origina escorços notáveis.

Constituída por tons que escapam à realidade, a paleta indica que a ideia prevalece sobre o realismo. O propósito se reafirma na alternância entre figuras em perfil e perspectivadas, entre elementos conhecidos, biomórficos, e outros, inidentificáveis. A essa concepção integrada de ideia e linguagem se coaduna a elevação do status ontológico humano. O delineamento corporal e as coordenadas que cruzam a cena simbolizam a conquista do perene. Tendo atingido o estágio maduro, a humanidade participa agora das leis eternas. À antiga mortalidade da carne se uniu a ortogonia, que lhes garante a imutabilidade. Por isso as figuras pairam no ar, em uma faixa etária indefinível. Perpetuamente adultas, são imunes ao declínio do tempo. Venceram a indeterminação da juventude e as demais forças que imperam sobre a matéria.

Guiada por um rico lastro histórico, Flora explora os efeitos simbólicos e psicológicos da arte através da recorrência a composições, episódios e personagens do inventário ocidental. A Antiguidade é revisitada; a iconografia, transfigurada. Essa relação peculiar entre passado e presente imprime familiaridade às cenas, analogando História, obra e observador por uma inegável sensualidade. Não se deve, portanto, mitigar o erotismo subjacente às cenas. Os personagens vivem a eterna contemplação de si e o gozo do que representam. À primeira vista, a intenção pode parecer contraditada pela ocultação do sexo. O recurso, porém, logo acusa o efeito almejado. O olhar percorre as figuras, deixando aberto à imaginação o que não foi representado.

Enleada por sonhos grandiosos, Flora mantinha uma compreensão indissociável entre arte e vida. Nessa equação, a prevalência do idealismo certamente concorreu para o abandono da carreira após a morte do marido, no final da década de 1970. Àquela altura, suas obras se reportavam a uma concepção de mundo tida como superada. A pós-modernidade se impunha, as encomendas eram glórias passadas e o abalo familiar confrontou seu idealismo com as tragédias da realidade. Flora viveu até 2007, no completo ostracismo artístico.

Reavaliação

Flora Morgan-Snell manteve-se alijada do cenário nacional tanto pela residência na Europa quanto pela propensão à hegemonia de círculos pequenos, como o nosso meio de artes. Sua produção não se enquadrava no restrito panorama brasileiro e sua liberdade configurava até mesmo um insulto para os padrões locais. Seu compromisso com a independência, contudo, era inegociável. Havia, na Europa e nos Estados Unidos, um horizonte amplo e diversificado, onde expunha, encontrava cultivadores e encomendas, como as realizadas para os Correios de Les Sables d'Olonne e para a Igreja da Trindade, em Paris. No Brasil, era reconhecida por poucos. Apesar disso, foi na concórdia que assentou sua arte. Concórdia entre presente, passado e futuro. Concórdia entre referências, ideias e finalidades.

Se é inegável que, em plena década de 1970, suas criações se reportavam a um ideário caro à de 1950, o tempo, por sua vez, se encarrega de reduzir distâncias e propiciar o julgamento desse legado para além de critérios coetâneos e locais. As telas de Flora merecem ser compreendidas mais pela força do conteúdo do que pelo desejo, nunca tido, de inovação e originalidade. Seus recursos são abertamente colhidos da estatuária Clássica, de Tiepolo, Michelangelo e de ilustradores e muralistas de meados do século XX. São muitos os paralelismos entre sua produção e as de Per Krohg e Hans Erni, em especial a desse último, pela proximidade que  a artista mantinha ao cenário cultural suíço.

Ao abandonar as telas, Flora não permitiu que sua produção enveredasse pelas tristezas da vida, mantendo sua arte como eterna lição de independência, otimismo e concórdia.


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Mais sobre a artista nesse vídeo:



Obras que ilustram esse texto:

A Virgem de Pentecostes, 1966 - óleo s/ tela 4 x 6 metros
O Nascimento do Dia, 1961 - óleo s/ tela 130 x 160 cm
Os Sequestradores do Mar, 1958 - óleo s/ tela, 2 x 10 metros


Um comentário:

Anônimo disse...

Eu possuo um trabalho de Flora no qual ela retratou minha tia a Embaixatriz Lydia Penna Marinho. Acredito que tenha sido realizado na década de 70, quando residiu em Paris acompanhando o marido na época Embaixador do Brasil na França.