quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Do esquadro aos pincéis - A pintura de Manoel Novello

'Polytheama' - Acrílica sobre tela, 100 x 210 cm 


Manoel Novello trilhou um percurso singular nas artes. Formado arquiteto, transferiu-se para a pintura, onde desenvolveu uma proveitosa investigação a partir do instrumental já adquirido. Fruto de um olhar arquitetônico, sua obra é influenciada pelo cenário urbano, o que pode ser atestado em títulos como 'Janela 2' e 'Panorama Ampliado'. Sua produção também rende homenagem a tradicionais locais públicos, em especial do imaginário carioca, como o bar Amarelinho, o aeroporto Santos Dumont, o cine Polytheama e a estação Central do Brasil.

Apesar das correlações com cenários existentes, as obras de Manoel se sustentam integralmente sem os títulos. Isso porque não são repetições visuais daquilo que é diretamente vivenciado. Mesmo que, vez ou outra, identifiquem-se reminiscências formais de seus pontos de partida, a chave de sua fruição não está na alusão nem no conhecimento dos objetos de referência. As criações decorrem de um processo de inspirações e evocações subjetivas, resultado das experiências pessoais e pesquisas pictóricas do artista. 

Manoel costuma ressaltar o caráter transcendente de sua produção. Se, para o cético, a observação parece condicionar o sentido das obras a aspectos extra-artísticos, uma compreensão mais ampla dos fatos logo revela uma interpretação que prescinde de qualquer crença. Essa transcendência refere-se a algo que ultrapassa a simples materialidade das coisas e a relação humana com o mundo baseada na dissociação entre sujeito e objeto.

Existe um fundo comum entre o humano e a totalidade da natureza e do universo, ao qual a arte, como a ciência, a filosofia e a religião, é uma via de contato. Existe uma transcendência no fazer artístico, pois o artista produz algo, uma obra, materializando ideias que antes conservavam-se apenas abstratamente, como possibilidades. Existe, portanto, uma transcendência na obra, já que esta consiste de um meio de acesso a ideias que escapam à ordinariedade do mundo conhecido - um meio empregado por um indivíduo, em uma linguagem específica - no caso, a pintura - que não pode ser traduzida nem substituída por outras linguagens.

Sem se filiar a correntes predeterminadas, Manoel Novello prossegue uma investigação sobre cores, linhas e tramas que remonta aos Construtivistas russos, a Mondrian, Joseph Albers e François Morellet. Sua contribuição a essas vertentes está no desapego a ortodoxias e na atualização do horizonte de referenciais criativos. A tela 'Polytheama' oferece um exemplo dessas proposições. Ao empregar tramas sobrepostas, dispostas em ângulo de 30 graus, o pintor abre espaço a uma exploração dos efeitos e possibilidades de suas correlações. Conectando os cruzamentos das tramas, estabelece sugestões de figuras tridimensionais que são, no entanto, deixadas em aberto. O recurso confere dinamismo à experiência visual, como se da superfície eclodissem vetores, cujas linhas estão a ponto de estruturar figuras tridimensionais. Tal efeito é acentuado pelo contraste entre essas linhas e suas tramas de origem.

'Polytheama' - detalhe

Já envolvido nessa interação com a obra, o observador completa então, imaginativamente, as sugestões de figuras tridimensionais. Mas o faz sem desconsiderar que a tela possui apenas duas dimensões, está estruturada a partir de sobreposições e seus demais elementos não receberam nenhuma ilusão tridimensional, como sombras, contornos, perspectiva ou atmosfera. O olhar perscruta a obra, apreendendo as sugestões volumétricas para, em seguida, atestar a reafirmação de sua bidimensionalidade. Enquanto essas operações são realizadas, uma outra divisão da superfície, em campos de cor a 90 graus, altera ou contrasta com os tons das demais tramas às quais está sobre ou subposta, gerando efeitos pulsantes.

Se à frieza tantas vezes associada à ortogonalidade o pintor já contrapõe esse jogo de relações e justaposições, multiplica ainda mais a experiência visual, empregando variações tonais, dispondo sequências das tramas em relevo e introduzindo elementos e interrupções que negam continuamente as previsões e antecipações do observador.

A conexão de tramas explorada por Manoel e a fatura da tela por camadas evoca a axonometria empregada na representação dos desenhos arquitetônicos. Tanto quanto paralelismos com o histórico urbano do autor, trata-se da elaboração das experiências gráficas e perceptivas adquiridas em sua formação como arquiteto. Com a transição para as artes visuais, Manoel levou para a pintura essa potencialidade plástica, seguindo, na nova linguagem, uma trajetória criativa deliberadamente não-figurativa.

As obras de Manoel Novello cativam por uma complexidade que não compromete sua compreensão. Mesmo quando levado aos limites da apreensão e da lógica visual, o observador reconhece e vivencia a experiência para a qual é convidado. Especialmente nas telas de grandes dimensões, há uma intenso diálogo entre sujeito e objeto e uma constante relação entre o possível e o impossível, entre a lógica e sua ruptura, entre o que está representado e o que é completado imaginativamente, seja na tela ou pela transcendência de fala o artista.


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