O maestro Francisco Mignone e Maria Josephina Mignone |
A música de Mignone foi composta nesse período e levada a uma audição fechada em dezembro de 1979, da qual Jorge Amado saiu entusiasmado. A ideia de encená-la como balé havia sido preestabelecida e a estrutura em episódios acompanhava a adaptação do texto, feita por Guilherme Figueiredo. Ficou então acertado que os cenários e figurinos seriam baseados nos desenhos de Carybé e a coreografia ficaria a cargo de Gilberto Motta.
A qualidade da criação de Mignone já era conhecida pelos que haviam participado da audição quando, em abril de 1980, uma gravação a cargo da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regida por Henrique Morelenbaum, precisou ser feita para os ensaios do corpo de baile. Sem que se saiba como, uma cópia da gravação acabou nas mãos dos responsáveis pelo Ballet Brasileiro da Bahia, grupo de dança tradicional que apresentava uma coreografia folclórica para a obra do escritor baiano. Graças ao vazamento, logo após a estreia, a música de Mignone podia ser ouvida no Municipal e também alguns quarteirões adiante, no Teatro João Caetano, reproduzida em fita magnética e acompanhada de danças populares, conforme nossos consagrados métodos de apropriação cultural.
A estreia oficial do Quincas, de Mignone, em 31 de Julho de 1980, no Theatro Municipal, resultou num estrondoso sucesso. Revelou um compositor em incrível atividade que, no mesmo ano, concluía também seu Duo Concertante para clarineta, fagote e orquestra, trabalhava nos bailados Maria, a Louca e O Caçador de Esmeraldas e finalizava um pequeno livro sobre a história da música no Brasil. O nome de Mignone aparecia nos cadernos de cultura dos jornais tanto pela produção quanto pela preocupação com os direitos autorais dos artistas brasileiros. As apresentações continuavam, gravações de suas obras eram lançadas, como a de Moreira Lima dedicado às Valsas de Esquina, e era praticamente inconcebível que um compositor daquela idade continuasse a trabalhar tanto.
Trecho de matéria publicada no JB de 22 de Maio de 1980 |
Em Quincas berro d'água, Mignone revisita material da juventude, reelabora temas de sua Suíte Brasileira e os dota de uma exuberância equivalente à dos anos de florescimento como artista nacional. A orquestra vibra, os temas apresentam-se em renovações constantes, mantendo vasto espectro de cores e sutilezas de caráter. O compositor, que havia estudado em Milão, sido influenciado por Mario de Andrade, Ernesto Nazareth, pela origem italiana, pelo universo popular evidenciado no singelo pseudônimo Chico Bororó, retribuía numa única obra tudo aquilo que o Brasil lhe havia proporcionado por toda a vida.
Como Villa-Lobos, Mignone trabalha com alternâncias de estados de espírito. Vai da derrota ao triunfo em um compasso. Une a alegria ao trágico, a impostura ao drama e, quando o ouvinte acredita que os episódios atingiram o ápice, exacerba a mensagem, dando novo sentido à compreensão da matéria musical. As referências são tantas a ponto de o compositor revelar, em uma entrevista, influências até mesmo da música eletrônica. Quincas é a apoteose de um personagem vagabundo, que se entrega à vida e encontra na consumação da tragédia seu momento de glória. Uma história dessa não poderia deixar de receber música repleta de reviravoltas, pulsações, mistérios e, claro, o inconfundível sabor da orquestração de Mignone.
Graças à boa acolhida, os desenhos de Carybé saíram em novo livro com fotos do espetáculo e a Orquestra Sinfônica Brasileira apresentou a obra mais vezes, uma delas na V Bienal de Música Brasileira, de 1983.
Mas a história da nossa música guarda injustiças incompreensíveis e o fato de Quincas ter angariado tanto sucesso, participado do conjunto de criações surgidas no esteio da criação de Jorge Amado e, ainda assim, ser praticamente desconhecida, nos deixa imersos em perplexidade.
Com a morte de Mignone, em 1986, Quincas berro d'água foi novamente executada pela OSB nos jardins do MAM RJ e em outro concerto, em homenagem ao centenário de Villa-Lobos. Atualmente existem duas gravações da peça, uma de 1981, ao vivo, com Henrique Morelenbaum e a OSB, e outra mais recente, gravada em cd em 2001 pela Orquestra Sinfônica do Recife sob a regência de Carlos Veiga, que é pouco divulgada. Apesar de a qualidade sonora da última ser evidentemente superior, a mais antiga, influenciada pelas orientações do compositor, é mais apurada e rica, de uma verve toda própria, que nos faz a todo instante perguntar: Por que uma obra-prima como essa continua relegada ao esquecimento?
2 comentários:
Belo post, Roberto! Assim como os inúmeros outros do site. Em relação à última pergunta: é mais uma dessas grandes obras que às vezes precisam ser reveladas, nas temporadas brasilis de concerto, com ajuda de fórceps. A eternização da obra do Mignone em disco, com certeza virá, num jorro de esforço dum selo Naxos da vida; basta esperar, (muito) pacientemente...
Obrigado, Gabriel. Espero que um dia essas maravilhas sejam publicadas por algum selo internacional e disponibilizadas também em streaming. A música brasileira tem verdadeiras joias à espera de serem descobertas e devidamente valorizadas. Forte abraço!
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