segunda-feira, 9 de maio de 2011

Geirr Tveitt - Acordes, Incêndios e Gnomos




          A história da música tem desses personagens estranhos, cujas biografias rendem um capítulo à parte. Não fossem os casos funestos, já célebres, da loucura de Schumann, da surdez de Beethoven, dos acidentes de palco, escândalos e suicídios, até que a vida do norueguês Geirr Tveitt pareceria um pouco mais incomum. Sua existência foi marcada por catástrofes, sucesso e incompreensão; sua música, ou o que dela restou, sofreu décadas de proscrição e desconfiança. Ultimamente, passados 30 anos de sua morte, Tveitt começa a ter o talento reconhecido graças àqueles laivos de tolerância (ou seriam esquecimento ?) que só o tempo é capaz de proporcionar. Mesmo assim seu nome, ignorado por enciclopédias e várias histórias da música, ainda está longe de integrar o repertório de uma orquestra ou receber um grau de interesse público que ultrapasse a mera curiosidade.
          Geirr Tveitt escolheu a atividade mais incomum para um compositor: era fazendeiro. Um trabalho desses, é claro, servia também como fonte de inspiração e Tveitt recolheu durante décadas canções populares, melodias tradicionais e familiares dos confins onde vivia. Do material surgiram 6 Suítes que, completas, somariam 100 peças para orquestra, além de criações para piano solo, variações para piano e orquestra, concertos e tudo o que seu gênio incansável era capaz de prover. Ocorre que praticamente tudo se perdeu. Na década de 1960 sua propriedade foi atingida por uma avalanche e em 1970 um incêndio destruiu 80 por cento de sua obra. Suítes, concertos, uma ópera, anotações e ensaios sobre a música norueguesa foram reduzidos a cinzas.
          Essa sequência de infortúnios foi apenas o coroamento de uma fase de ostracismo imposta justamente pelo que o tornava um indivíduo incomum. Tveitt era adepto de crenças pagãs e de teorias raciais a respeito de modos e tonalidades da música. Vivia isolado nesse mundo mais imaginário que real, povoado por esquisitices mitológicas, seres fantásticos, gnomos e trolls. Na década de 1940 envolveu-se com colaboracionistas da invasão nazista à Noruega e da pecha - talvez das convicções - jamais se livrou. O gosto do sucesso viria apenas com a carreira de pianista e produtor de um programa de rádio voltado para a música folclórica de seu país.
          Numa época que a música dita "culta" enveredava por atonalismos, dodecafonismos, serialismos e todas as tentativas de se varrer o passado do mapa, o perfil de Tveitt destoa drasticamente. Sua linguagem tem um quê neo-romântico, meio impressionista, meio Stravinskyana, com reminiscências de Bartok. Nela não se ouve muito do compatriota Grieg, além da introspecção nórdica e do caráter mais meditativo que melancólico. O espírito de Grieg reaparece apenas no apego à melodia popular. Não se ouve também Villa-Lobos, com quem, curiosamente, travou contato na Europa. Se absorveu algo do autor dos Choros ainda está para ser estudado, muito embora quem escute o quinto ou nono episódio de sua segunda Suíte Hardanger desconfie que o encontro foi além do simples bate-papo.
          A partir da década de 1990 as obras sobreviventes de Tveitt foram lançadas em gravações de distribuição mundial. Os registros anteriores em LPs atendiam apenas o mercado local norueguês ou compunham coletâneas de compositores nórdicos que, para os colecionadores de hoje, são artigo raro. Dessas criações o quarto concerto para piano e orquestra tornou-se o cartão de visita. Apesar de os Concertos número 1 e 5 não deixarem a desejar, o "Aurora Boreal", como é conhecido, fez muito sucesso entre o público que, logo na estréia, reconheceu o valor de sua força rítmica e vigor expositivo sem deixar de apreciar sobretudo o espírito onírico das melodias. Repleta de alternâncias, contrastes e combinações inovadoras entre solista e instrumentos do conjunto, sua construção contribui bastante para a impressão final deixada no ouvinte. O movimento lento é o último, o que reafirma a imagem noturna, sobrenatural, que inspirou a escrita. A versão atualmente apresentada nas salas de concerto é uma reconstrução a partir de anotações e da gravação em disco tendo como solista o próprio compositor.
          Além do "Aurora Boreal", outras peças que se destacam em sua obra são a série de 4 Suítes orquestrais baseadas em temas populares de Hardanger. Esses episódios curtos, de 2 ou 3 minutos, apesar da inspiração singela, constituem ricos quadros sinfônicos sugeridos por um universo cultural fantástico e distante.
          Talvez sua peça digna de maior nota sejam as Variações Sobre uma Canção Popular de Hardanger, para dois pianos e orquestra. Como as demais obras, é uma criação de linguagem moderna, cuja abordagem não confunde tradição com antropologia saudosista. No decorrer de 30 minutos o caráter épico do tema principal ganha contornos enfáticos introspectivos, afirmativos e idealistas. A gama expressiva é vasta e a eloquência lembra muito a de um discurso falado.
          Desconsiderando os Noruegueses, para quem música de Tveitt adquiriu status de patrimônio nacional, pode-se dizer que o público para essas obras será sempre restrito. Pela inspiração popular, Tveitt é comparado a Grieg e preterido. Pelo episódio político, condenado. Pela linguagem, deslocado da visão evolucionista que o julga um episódio isolado. Mas isso não deveria representar qualquer demérito. Sua criação, assim como a de Bartok, Villa-Lobos ou Kodály, toma a tradição antes de mais nada como identidade cultural que se renova para manter-se viva, atual e presente.
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