segunda-feira, 17 de outubro de 2022
Adeus ao Maksoud Plaza Hotel
quinta-feira, 31 de março de 2022
Arte para além da bolha
Quem quer que saia da bolha e acompanhe o que, de fato, há na atual produção de arte, percebe que vivemos um período de múltiplos ecletismos. Já não se pode dizer nem mesmo que grandes projetos - estilísticos, ideológicos, de linguagem, os ismos - morreram, porque a própria ideia de um projeto para a arte está sepultada. O artista de hoje segue objetivos e processos criativos próprios, dá continuidade a vertentes que julga passíveis de exploração. Ao lado dos NFTs, a pintura tradicional, de cenas e retratos, continua seu rumo pelas mãos de pintores independentes ou agremiados em sociedades mantenedoras de antigos gêneros. Obras tridimensionais, derivadas das instalações e assemblages, performances, propostas sonoras, olfativas, táteis - tudo isso convive com a velha prática de figuras e bustos em bronze e mármore. O fim da História, o fim da beleza, o fim da Arte, o fim disso, daquilo - o tempo dos manifestos e declarações impactantes ficou para trás e as incursões por esse terreno soam demodées, merecendo, no máximo, uma condescendente risada.
Roberto Ferri - Prisão de Lágrimas óleo sore tela, 40 x 60 cm |
As coisas tomaram orientação mais aberta e, hoje, por mais que alguém prefira linguagens novas, dificilmente deixará de reconhecer o valor de um Roberto Ferri, por exemplo. Há duas décadas nomes como Ai Weiwei, Ron Mueck, Anish Kapoor e Olafur Eliasson arrebanham multidões para mostras de circuito internacional sem que os ataques dos que desprezam a arte contemporânea surtam qualquer efeito. Tampouco importa o intelectualismo dos que desdenham do gosto do público e de artistas populares como esses. Vaticinar que não representam a arte contemporânea, que lhes falta conteúdo, qualquer que seja, que tal ou qual obra atenta contra a moral e os bons costumes, que a produção atual é um lixo - tudo isso encontra ressonância apenas em nichos sectários.
Olafur Eliasson - The Weather Project, 2004 |
Esse processo de diversificação ocorreu sem dúvidas por razões econômicas, afinal oferta e demanda se atendem. Mas o fetiche economicista ficou igualmente para trás, dando espaço a outras visões, tão ou mais importantes para a compreensão de fenômenos históricos e culturais. No que se refere ao cenário de artes, um dos fatores é o descrédito em que caíram os críticos e historiadores. Basta ler textos de exposições para se atestar que os primeiros perdem-se facilmente em uma linguagem confusa, repleta de jargões. Ler esses textos é ter a impressão que podem significar qualquer coisa, ou absolutamente nada. Já os historiadores abraçam grandes construções, de belíssima envergadura, mas que em grande parte se sustentam pelo que deixam de fora. Histórias da Arte devem ser vistas como a exposição de uma linha geral de contexto e criação, não como autoridades eliminadoras de autores e obras. Histórias da Arte são essenciais, tanto quanto é essencial deixá-las de lado para se entender, de fato, o que é a Arte, que se encontra em obras, não na História.
À já conhecida democratização do acesso à informação pela internet segue-se o declínio dos órgãos de imprensa, que abdicaram das seções culturais. O jornalismo de hoje contenta-se com a disputa política, com a derrubada ou defesa de nomes e, quando abordada, a arte é quase sempre diminuída, rebaixada ao entretenimento e lugar-comum, quando não confundida com a indústria cultural. Nas raras ocasiões em que lhe é concedida abordagem mais específica, a exiguidade de espaço impede o desenvolvimento de análises. Ler jornais hoje é se perguntar se seriam possíveis fenômenos da crítica como Robert Hughes, Brian Sewell, Michael Gibson, Mario Pedrosa - e saber de antemão que a resposta é negativa. Críticos hoje se fazem por meios próprios, não estão mais em uma relação de agregação de valores com veículos de comunicação. Isso é lamentável pois a falta de projeção de vozes contribui para a manutenção de bolhas de pensamento, inclusive a dos próprios críticos, que acabam aprofundados no especialismo, cada vez mais distantes do público.
Acompanhar a produção de arte hoje é tarefa individual e personalizada. É eleger os próprios referenciais, seguir perfis de artistas no instagram, páginas de revistas e galerias, fazer pesquisas online, ler análises e comentários independentes. E, claro, frequentar o circuito de exposições. Essas práticas, quando não cerceadas por ditames ideológicos, levam à descoberta e ao cultivo do trabalho de uma plêiade artistas que seguem as mais variadas tendências e linguagens. Levam a novas leituras e novos julgamentos para demais âmbitos da sociedade e também a possibilidades, novas e esquecidas, para a vida. E levam sobretudo à desconsideração dos que se arvoram ao proclamar o fim da arte, o fim da História, o fim da beleza, disso ou daquilo. Slogans são deformadores da realidade. São um condensado de ideias previamente selecionadas com o objetivo de limitar a visão e compreensão dos fatos. Os que abandonam a bolha entram em contato com um universo rico, em que as conquistas e interesses humanos coexistem de formas múltiplas e complementares.
Paulo Vivacqua - Nympheas, 2015 Vidro, espelho, alto-falantes e amplificadores |
domingo, 20 de fevereiro de 2022
A Afirmação Modernista no Paço Imperial
Entre as décadas de 1930 e 1970, a consolidação das instituições públicas do país esteve acompanhada por iniciativas de fomento à arte. Pintores e escultores eram contratados para executar painéis em edifícios, telas e esculturas eram adquiridas para acervos, exposições e premiações eram organizadas. Assim, diante do tímido mercado interno, o Estado aparecia como um dos pilares econômicos da produção nacional. Essas iniciativas, porém, não eram contínuas e nem sempre atendiam a critérios muito claros. Não raro eram coordenadas por artistas que figuravam entre os próprios servidores das instituições, e que colaboravam, a seu modo, com o empreendimento.
Com o redirecionamento econômico a partir dos anos 90, vários desses órgãos estatais foram privatizados e deixaram como legado seus acervos. Um deles é o pertencente ao antigo Banerj, atualmente mantido pela Funarj e selecionado para a mostra A Afirmação Modernista, no Paço Imperial.
Quem frequenta o circuito cultural do Rio de Janeiro reconhecerá alguns dos destaques. As telas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, Emeric Mercier e Manabu Mabe estiveram ainda há pouco em outras mostras, no BNDES e CCBB. Mas o que torna especial A Afirmação Modernista não é propriamente uma ou outra obra, e sim a possibilidade de se conferir esse acervo em um só lugar. Desse modo, além de apreciar telas e gravuras, o visitante pode confrontá-las entre si, frente ao conjunto, questionar as escolhas de aquisição do banco - enfim, uma oportunidade que tão cedo não deverá se repetir.
Eugênio Sigaud - A Escultura do Comércio e a Rua, 1942 |
Di Cavalcanti - Brasil em Quatro Fases, 1965 |
Isabel Pons - Poblet, 1965 |
Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas, 1926 |
Alvim Menge - Copacabana, início Séc.XX |
Benno Treidler - Entrada da Barra do Rio de Janeiro |
Estevão Silva - Caça, 1889 |
terça-feira, 3 de agosto de 2021
Estado Bruto no MAM RJ
Os novos ares que circulam pelo MAM renderam mais uma exposição notável, dessa vez ao encontro de certa imaginação do público a respeito do acervo do museu. Não há visitante que nunca tenha se perguntado sobre o conteúdo da coleção, as obras guardadas, pouco expostas, e o porquê do oblívio. Uma incursão pelo acervo de esculturas - melhor dizendo, obras tridimensionais - do MAM é oferecida pelos curadores da mostra Estado Bruto. Uma incursão nada comum, com o maior número dessas obras apresentado em toda a história do museu.
Estado Bruto deixa de lado o esquema tradicional de cronologias, releituras ou defesas de tal ou qual ponto de vista sobre determinado artista ou assunto. É claro que um caráter panorâmico permeia a proposta, mas de modo difuso, intercruzado, já que as obras não estão dispostas segundo uma sequência de criação. Elas estão agrupadas em diálogos, com suas distintas linguagens, abordagens, concordâncias, discordâncias, antíteses, analogias e, em especial, suas complementaridades. Cabe ao visitante colocar em ato essa interação potencial e também tirar suas próprias conclusões sobre a razão de terem sido, historicamente, mais ou menos apresentadas. Não é necessário que se chegue a um juízo único nem previamente desejado a partir dessas interações. O que importa, afinal, é a multiplicidade de pontos de vista e a celebração da arte e do acervo do museu.
Vivemos um tempo em que narrativas oficiais caíram em descrédito e instituições se renovam, buscam essa reaproximação do público afastado pelo velho exclusivismo do meio cultural. Hoje, se alguém sente-se excluído de um círculo, encontra outros círculos com um toque no celular, reúne-se a pessoas com ideias e desejos semelhantes - e dá uma banana aos deuses em fajutos pedestais. Um museu, em especial dedicado à arte moderna e contemporânea, precisa guiar-se por esses parâmetros sociais e valorativos vigentes na 3a década do século XXI. E nos últimos anos, a nova direção do MAM tem correspondido cada vez mais a esses preceitos.
O que vem ocorrendo no MAM demonstra que, ao contrário do que muitos creem, aproximar-se do público nada tem a ver com rebaixar o nível das atividades, muito menos abdicar da missão formativa e do status referencial do museu. Isso fica claro em Estado Bruto, onde, por mais flexíveis e propositivos que sejam os critérios da mostra, há um elaborado pensamento na seleção de obras, na separação e disposição por diferentes espaços e mesas e na correlação estabelecida para as peças. Nada é aleatório, nem voltado ao simples gozo visual. Em cada opção subjazem dimensões pedagógicas, fruitivas, educativas.
Vemos assim, lado a lado, criações como Integração, de Paiva Brasil, a cerâmica A Mãe, de Antonio Poteiro e os Asteroides, de Wilson Piran. Diferentes matérias estão presentes nessa interação: a madeira, o barro e o acrílico. À natureza de uns se contrapõe a artificialidade do outro. À transparência dos Asteroides se opõe a opacidade das demais. O rigor da ortogonia de raízes Concretistas é contraposto pela organicidade manual. Entre formas artificiais está uma essencialmente biológica, impregnada de valores, mas transfigurada pelo mundo interior do artista. À tese da indústria se amalgama a antítese inevitável da vida.
Obras de Paiva Brasil - Antonio Poteiro - Wilson Pirani |
Em outra estante, a dimensão humana do amor e do erotismo marca presença com Ondine, de Henri Laurens, Reino Distante, de Márcia X, Baú de Palavras, de Rosana Ricalde e um bronze sem título, de Tunga. O desejo pela posse da matéria lida com a intangibilidade e uma fusão impossível, com pensamentos ocultos e a presença do desconhecido, do inclassificável. São obras de linguagens conflitantes, reunidas por uma complementaridade necessária.
Obras de Marcia X - Rosana Ricalde - Henri Laurens |
É uma delícia viver esses dias em que obras como Mão de Guerreiro, de Bourdelle, Mademoiselle Pogany, de Brancusi e Icosaedro, de Felipe Barbosa são postas lado a lado. Em um diálogo assim, hierarquias e autoridades se desdizem, se diluem, como nas conversas dos habitantes da cidade maravilhosa que abriga esse precioso museu, renovado por preciosos ares.
Obras de Brancusi - Felipe Barbosa - Antoine Bourdelle |
quinta-feira, 29 de julho de 2021
Anthony Howe - O Constante Devir
A obra de Anthony Howe pertence à categoria ampla e sob muitos aspectos vaga denominada arte cinética. Ampla porque engloba criações que remontam aos Futuristas e Construtivistas russos, passando por Marcel Duchamp, Calder, Palatnik, Nicolas Schoffer e experiências da Op Art. E vaga por referir-se a obras tão díspares entre si, unidas pela simples característica de terem partes móveis.
Categorias e terminologias são convenções na arte; não devem ser tomadas ao pé da letra. Do contrário, restringem a investigação do artista e a relação do público com a obra, pelo estabelecimento de limites interpretativos e enfoques predeterminados. Convenções, portanto, têm muito de confusão e indistinção - e é precisamente disso que têm sido objeto as obras de Anthony Howe. Seus referenciais são buscados na ficção, em vez de na própria arte. Diz-se que são autômatos, quase seres vivos, convergência da biologia e avanços tecnológicos. O próprio artista contribui para fomentar essa aura ficcional, ao relacionar nominalmente as obras a seres da natureza e declarar a existência de uma dimensão futurística no que faz.
Partindo de preceitos confusos, a fruição convencionada para as obras de Howe segue por descaminhos: A dita fusão da natureza com o artificial decorre da alusão formal a esqueletos, flores e artrópodes que, rotacionados pelo vento, suscitam a ideia de vida. O sugerido teor futurístico, por sua vez, evoca um porvir alimentado há quatro décadas pelo cinema, em que a humanidade, tendo perdido o lastro estético tradicional, criaria artefatos a partir de despojos da antiga civilização, com uma simbólica nova, de beleza peculiar, até mesmo bizarra.
Tudo isso pode parecer interessante como ficção, mas desvirtua uma produção rica e inventiva, deixando de lado seu real valor. Tão logo removidas desse cenário e consideradas à luz da própria arte, as obras de Howe conquistam uma posição de relevo na produção cinética, dialogando com suas matrizes no Futurismo, Construtivismo e Op Art. Se seus precedentes, como Schoffer e Palatnik requeriam mecanismos elétricos para o movimento controlado, as criações de Howe movem-se como cata-ventos, por forças imprevisíveis, da própria natureza. Se Schoffer e Palatnik criavam para interiores e lidavam com luz artificial, Howe produz para ambientes externos e explora a reflexão da luz solar, em consonância com o ideário contemporâneo de sustentabilidade. Muito mais do que aludir a um porvir fictício, o artista realiza, no presente, o futuro um dia idealizado: de uma arte em que convergem, física e simbolicamente, indústria e natureza.
Obras cinéticas de Nicolas Schoffer e Abraham Palatnik |
A consideração dessa produção à luz de suas antigas congêneres também demonstra que, por cinéticas que sejam, consistem em armações tão pousadas sobre o solo quanto uma escultura tradicional. Elas existem como um sistema fixo, com a especificidade de que parte de seus componentes se projetam e se retraem, podendo seguir esse ciclo indefinidamente. Ao se moverem, esses componentes oferecem uma profusão de efeitos visuais derivados de suas relações não apenas entre si, mas também com as condições do ambiente e o espaço. Como uma parte dos componentes se projeta enquanto outra se retrai, a obra renova, continuamente, por sua própria natureza formal e relacional, suas possibilidades.
As criações de Howe seguem, portanto, um processo de metamorfose cíclica, em uma concepção ao mesmo tempo dinâmica e estática. Tal característica é explorada desde longa data na arte, por seus paralelos com o pensamento e a vida. Na música, por exemplo, encontra-se na polifonia da renascença franco-flamenga de Ockeghem e Dufay, cuja estrutura proporciona nem tanto uma experiência de desenvolvimento sequencial, de começo, meio e fim. Em vez disso, nessas obras prevalece uma transformação sonora pelos encontros das notas, em acordes ou intervalos, que se expandem e se propagam no espaço. Modernamente, esse recurso foi retomado por Giorgy Ligeti em obras como Atmosphères, Requiem e Lux Aeterna. Passando por vertentes minimalistas, chegou aos dias de hoje como base da chamada Drone Music. Na escultura tradicional, esse processo de projeção e retração aparece de modo contingente, mas notável, nas composições plásticas do período Helenístico e Barroco. Já na Arquitetura, pode ser encontrada nas fachadas de Borromini e, contemporaneamente, de modo pleno nas criações de Frank Gehry, cujas extrusões constituem verdadeiras irrupções da obra no espaço.
As obras de Howe, a exemplo das ideias pré-Socráticas, seguem uma alternância de contrários. Como o rio de Crátilo, são aquilo em que se tornam. São um constante devir. Não existem cristalizadas no mundo, mas em relação a ele, influenciando-o pela sua presença e sendo por ele influenciadas, realizando, nesse processo, sua natureza mais intrínseca.
A própria trajetória de Howe segue esse padrão de alternâncias. Tendo começado a carreira como pintor, encontrou os conhecidos obstáculos do meio e foi obrigado a mudar de profissão. Passou a trabalhar em uma montadora de móveis de escritório, onde entrou em contato com as potências expressivas do metal. Dessa experiência, ressurgiu como artista, sob a égide de sua atual produção cinética.
Essa é a essência de Anthony Howe, revelada em sua vida e em sua arte. Suas obras, consideradas desde o ponto de vista histórico e de suas correlações filosóficas e humanas, abrem caminhos para novas investigações e derivações cinéticas, tanto suas quanto de demais artistas - o que não ocorre quando julgadas por meras analogias biológicas e futurísticas estabelecidas pela convenção.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2021
Pietrina Checcacci em Retrospectiva
Pensamentos, 1965 e Tempo da Terra, 1978 |
Para o olhar atento, não passam despercebidas certas constâncias nessa produção. Marcadas pela experimentação técnica e temática, as telas iniciais de Pietrina são de um figurativismo carregado de inquietações. Mas como que transubstanciando influências e preceitos, a artista logo encontrou uma linguagem mais leve, fluida, de tons claros, que revelava mais de si e cuja exploração foi levada adiante. Essa mudança também pavimentou o caminho para sua escultura, com o aporte de preceitos materiais, físicos, mais ousados. Se parece haver um antagonismo entre as telas iniciais e as posteriores, fica claro, porém, que sempre foram dotadas de uma energia latente, reveladora de um estado de espírito que ordena as formas e estrutura as composições.
Decifra-me ou te Devoro, 1983 e Verde e Rosa, 2020 |
Essa produção também é marcada por um acentuado espírito do tempo: na técnica, na paleta, na composição e, a partir da década de 1970, na visão holística que analoga o corpo humano à natureza e a forças universais. Há quem renegue abordagens desse tipo, pelo risco de excesso de subjetivismo e de uma sujeição a considerações externas à arte. Há quem resista ao fato de uma escultura poder servir como suporte de mesas, serre-livres ou atender outras utilidades, contrariando as expectativas mais estritas de separação entre arte e vida prática.
Mas é a própria artista quem explica, sem rodeios, o que há em sua obra. Em uma entrevista da década de 1980, esclarece que a opção por retratar partes do corpo se deve ao potencial plástico de mãos, pernas e braços. E que o utilitarismo das esculturas visa trazer criatividade ao cotidiano, fazendo com que arte e vida se tornem indissociáveis.
De fato, mais do que a simples cópia da realidade visível, sua obra é eminentemente plástica. Mesmo explorando um repertório específico, suas telas estabelecem diferentes evocações e analogias a partir de configurações formais. Não estabelecem nem dependem de textos ou narrativas. São, muitas vezes, paisagens derivadas de corpos. As esculturas, por sua vez, não retratam indivíduos específicos: são lisas, reluzem em cores e brilho fortes, perfeitas em sua artificialidade.
Suas telas e obras tridimensionais se complementam, tanto em preceitos quanto pelo forte espírito da Pop Art. Se na pintura Pietrina busca algo transcendente, com ecos surrealistas, sua escultura é insinuante, explora as potências da forma e exercem apelo tátil. Vale sublinhar que essas criações tridimensionais não são esculturas no sentido estrito do termo, de desbastar e polir pedras, mas no amplo, de modelagens, que lança mão de técnicas atuais como fibras de vidro e pintura industrial.
Selene, 1985 |
A década de 2010 assistiu a retomada de linguagens e estéticas de um passado não muito distante. Em 2021, jovens escutam Rock, vestem New Wave, cultuam antigos videogames e objetos vintage. Assistimos a revalorização do historicismo na arquitetura, o retorno dos discos de vinil, das plantas à decoração de interiores. A tecnologia e as mídias sociais possibilitaram essa redescoberta do que estava esquecido, sonegado pelos donos de narrativas oficiais. Pessoas com interesses em comum se aproximam, artistas e público se encontram em postagens na internet. Essa livre busca e incorporação de referenciais levou à emancipação individual em todos os níveis e ao consequente colapso de projetos e considerações exclusivistas da Arte. A consciência de que verdades não passavam de versões não poderia ter outro desfecho: pôs em xeque até mesmo a História dessa disciplina tal qual era estudada nos últimos séculos.
Uma visão da arte brasileira só será válida se abranger o múltiplo, as variadas correntes e vertentes em voga e que se foram, e não cânones nem recortes, com preceitos e finalidades preestabelecidos. Espaços como a Caixa Cultural, BNDES e os Centros Culturais da Justiça Federal e dos Correios têm prestado uma valiosa contribuição à divulgação de nossa produção cultural. No caso desse último, são dignas de nota as mostras dedicadas a Roberto Moriconi, Flora Morgan-Snell e artistas de linhagens mais antigas, como Edgard Cognat.
A arte das décadas de 1960 e 1970 nos parece mais próxima hoje do que parecia 20 ou 30 anos atrás. E Pietrina Checcacci tem a oferecer algo livre, telúrico, etéreo, e também sensual, ousado, a esse período de ecletismo que vivemos, ainda inclassificável.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
Novos Ares no MAM-RJ
A nova iluminação do térreo do MAM |
Vista da mostra de Hélio Oiticica |
domingo, 12 de janeiro de 2020
Livro: Georgy Sviridov - Compositor Russo
Nesse livro analiso a trajetória musical de Georgy Sviridov, compositor russo praticamente desconhecido no Ocidente.
A descoberta de Sviridov inaugura uma nova visão da música do século XX e da relação que um artista pode manter com um regime autoritário. Escrevi, de maneira livre e descomprometida, o que penso a respeito do compositor e suas criações. Espero que meu estudo seja assim compreendido e que contribua para a divulgação do legado desse grande artista.
Download PDF, versão para celular: Georgy Sviridov - Compositor Russo
terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Análise de uma Obra de Arte Abstrata
quinta-feira, 13 de junho de 2019
José Bechara - Presença, Espaço e Tempo
terça-feira, 4 de junho de 2019
Arte com Roberto Ormond - Primeiro Programa
quarta-feira, 17 de abril de 2019
Flora Morgan-Snell: Pintora, Artista, Brasileira
Flora Morgan-Snell é uma artista esquecida. Seu nome não consta na história de nossa arte. Suas obras são ignoradas no Brasil. Pintora e escultora de orientação livre, colecionadora de prêmios como o Léonard de Vinci, do Salão de Arte Livre de Paris e de Escultura da Grécia, expositora em galerias como a Bernheim Jeune e no Museu de Arte Moderna da França, participante de eventos da UNESCO e organizadora de exposições de artistas contemporâneos brasileiros e estrangeiros na Europa, Flora não merece o ostracismo a que foi relegada.
Permeada de simbolismo, a pintura de Flora é baseada em uma fusão entre presente, passado e futuro. Sua concepção monumental, geralmente em painéis, potencializa a visão grandiosa e otimista que a artista nutria da modernidade. Para ela, essa fase histórica significava não uma ruptura, conforme a visão tradicional, mas uma elevação do status ontológico humano. A ascensão à nova era transcendia culturas, reunificava a espécie, realizando o pressuposto universalista moderno.
As diferença entre indivíduos são, por isso, reduzidas a um mínimo de atributos. Homens e mulheres não pertencem a classes ou raças. São miscigenados. Abstraídos de origem, simbolizam a potência vital em toda sua plenitude.
Essa pintura oferece uma antítese à visão atual, relativista e identitária, da pós-modernidade. Diante de sua concepção valorativa, o observador compreende a si como parte da epopeia humana e vislumbra um sentido para a vida que transcende sua própria existência. Nesse sentido, é preciso que as palavras da artista sejam compreendidas nos termos adequados. Flora dizia que fazia pintura brasileira. Basta olhar a iluminação das cenas; basta olhar os cabelos, as feições, a tez bronzeada, para encontrar nessas obras a atmosfera e os tipos nacionais. Em suas telas não há cenas de conflitos nem guerras, muito menos reabertura de antigas feridas, que julgava superadas. É sobre o pressuposto de um reencontro para a concórdia final que desenvolvia o pensamento. A fusão das raças, tal qual ocorrida no Brasil, participa, assim, da consecução da grandeza majestática reservada à humanidade.
No aspecto formal das obras, é o tratamento dado aos sucessivos planos que confere monumentalidade às composições. Linhas retas e curvas cruzam a tela entre as figuras, unificando eventos e dramatizando o espaço. Dominadas pelo forte desenho, as formas se desenvolvem em campos preenchidos por transições cromáticas que estabelecem volumes. A disposição das figuras e demais elementos em sequências de cheios e vazios concorre para o acentuado jogo de gesto e força, movimento e estaticidade. Ainda que haja hipertrofia dos corpos, predomina uma atenção honesta à musculatura, o que origina escorços notáveis.
Constituída por tons que escapam à realidade, a paleta indica que a ideia prevalece sobre o realismo. O propósito se reafirma na alternância entre figuras em perfil e perspectivadas, entre elementos conhecidos, biomórficos, e outros, inidentificáveis. A essa concepção integrada de ideia e linguagem se coaduna a elevação do status ontológico humano. O delineamento corporal e as coordenadas que cruzam a cena simbolizam a conquista do perene. Tendo atingido o estágio maduro, a humanidade participa agora das leis eternas. À antiga mortalidade da carne se uniu a ortogonia, que lhes garante a imutabilidade. Por isso as figuras pairam no ar, em uma faixa etária indefinível. Perpetuamente adultas, são imunes ao declínio do tempo. Venceram a indeterminação da juventude e as demais forças que imperam sobre a matéria.
Guiada por um rico lastro histórico, Flora explora os efeitos simbólicos e psicológicos da arte através da recorrência a composições, episódios e personagens do inventário ocidental. A Antiguidade é revisitada; a iconografia, transfigurada. Essa relação peculiar entre passado e presente imprime familiaridade às cenas, analogando História, obra e observador por uma inegável sensualidade. Não se deve, portanto, mitigar o erotismo subjacente às cenas. Os personagens vivem a eterna contemplação de si e o gozo do que representam. À primeira vista, a intenção pode parecer contraditada pela ocultação do sexo. O recurso, porém, logo acusa o efeito almejado. O olhar percorre as figuras, deixando aberto à imaginação o que não foi representado.
Enleada por sonhos grandiosos, Flora mantinha uma compreensão indissociável entre arte e vida. Nessa equação, a prevalência do idealismo certamente concorreu para o abandono da carreira após a morte do marido, no final da década de 1970. Àquela altura, suas obras se reportavam a uma concepção de mundo tida como superada. A pós-modernidade se impunha, as encomendas eram glórias passadas e o abalo familiar confrontou seu idealismo com as tragédias da realidade. Flora viveu até 2007, no completo ostracismo artístico.
Reavaliação
Flora Morgan-Snell manteve-se alijada do cenário nacional tanto pela residência na Europa quanto pela propensão à hegemonia de círculos pequenos, como o nosso meio de artes. Sua produção não se enquadrava no restrito panorama brasileiro e sua liberdade configurava até mesmo um insulto para os padrões locais. Seu compromisso com a independência, contudo, era inegociável. Havia, na Europa e nos Estados Unidos, um horizonte amplo e diversificado, onde expunha, encontrava cultivadores e encomendas, como as realizadas para os Correios de Les Sables d'Olonne e para a Igreja da Trindade, em Paris. No Brasil, era reconhecida por poucos. Apesar disso, foi na concórdia que assentou sua arte. Concórdia entre presente, passado e futuro. Concórdia entre referências, ideias e finalidades.
Se é inegável que, em plena década de 1970, suas criações se reportavam a um ideário caro à de 1950, o tempo, por sua vez, se encarrega de reduzir distâncias e propiciar o julgamento desse legado para além de critérios coetâneos e locais. As telas de Flora merecem ser compreendidas mais pela força do conteúdo do que pelo desejo, nunca tido, de inovação e originalidade. Seus recursos são abertamente colhidos da estatuária Clássica, de Tiepolo, Michelangelo e de ilustradores e muralistas de meados do século XX. São muitos os paralelismos entre sua produção e as de Per Krohg e Hans Erni, em especial a desse último, pela proximidade que a artista mantinha ao cenário cultural suíço.
Ao abandonar as telas, Flora não permitiu que sua produção enveredasse pelas tristezas da vida, mantendo sua arte como eterna lição de independência, otimismo e concórdia.
Obras que ilustram esse texto:
A Virgem de Pentecostes, 1966 - óleo s/ tela 4 x 6 metros
O Nascimento do Dia, 1961 - óleo s/ tela 130 x 160 cm
Os Sequestradores do Mar, 1958 - óleo s/ tela, 2 x 10 metros
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019
Xilogravuras de Lucie Schreiner
Muito se pode esperar da crescente produção de Lucie Schreiner. Cada uma de suas gravuras aborda uma dimensão do fascínio e oferece parâmetros próprios de fruição. Vistas em conjunto, são capazes de reter por horas o olhar. Nessas composições intrincadas, verdadeiros mundos em miniatura, componentes se entrelaçam, numa intensa simbiose. A elementos biomórficos se unem correntes, laços e engrenagens. Equipamentos eletrônicos e científicos concorrem para instaurar realidades paralelas, fundadas em leis próprias.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
Danilo Ribeiro - Do Pitoresco aos Bits
Castlevania acrílica s/ tela, 195x260 cm |
PM, da série Viagem Pitoresca ao Rio Contemporâneo acrílica s/ tela 100x60cm |
sexta-feira, 5 de outubro de 2018
A Vida imita a Arte
Os Problemas das Histórias da Arte
Nesse vídeo comento aspectos a serem considerados na leitura das Histórias da Arte, como exclusão de assuntos e artistas, mudança de interesses estéticos e métodos de interpretação histórica dados a priori.
A Fotografia como referência para a Pintura
Morre o retratista inglês Michael Noakes
quinta-feira, 14 de junho de 2018
Valentina Lisitsa
Meu primeiro contato com as interpretações de Valentina Lisitsa ocorreu em 2007, nos primórdios do Youtube. Àquela época, uma pianista que mantinha canal próprio, postava as interpretações e deixava espaço para comentários era uma grande novidade. A falta de histórico deixava subentendido que Valentina havia dado uma rasteira no establishment. Ela seria uma outsider, que abraçava a tecnologia para alçar voo solo. É claro que isso não correspondia bem à realidade. Valentina havia estudado em conservatório, participado de concursos, ganho um prêmio. Tinha anos de estrada. Mas os entusiastas do então popular Orkut alimentavam toda uma mítica a seu respeito.