Youth, 2009 |
Foi difícil chegar lá. Eu já havia esperado um bom tempo sob o sol para atravessar a Rio Branco que, afetada pelo desmonte da Perimetral, operava em mão dupla. O calor estava realmente forte e o ar, seco, mas o cafezinho e a loja de design me resgataram desse conflito existencial urbano. Mais uma vez vi o banco Quito, que ainda vou comprar. Lembrei-me de outras idas ao museu, de conversas que tive naquelas mesas com pessoas de todos os cantos do mundo. Onde estarão? - eu me perguntava. Não por ali, certamente. Era uma 5a feira e a quantidade de visitantes só aumentava a expectativa pelo contato com as obras de Mueck - o primeiro, pois só o conhecia dos livros e programas de tv.
Quando visito um museu procuro driblar as vicissitudes a fim de instituir em mim uma percepção que escape à da realidade imediata. No caso do MAM, tomo um café e circulo entre as colunas, observando o jardim de pedras enquanto sinto os estranhos efeitos do som e do vento próximo ao vão central. Estimulo assim os déja vus; cultivo então esse substrato de experiências capazes de me transpor para um conjunto de referenciais próprios, do qual alguns critérios participam mais do julgamento e compreensão do que outros. Para que essa passagem ocorra é preciso, porém, que eu tenha antes olhado o edifício um pouco de longe - não o bastante a ponto de ter deixado de notar a impressão das fôrmas de madeira no concreto, mas de uma distância tal capaz de ter me proporcionado a abstração do restante da cidade e ao mesmo tempo permitido ser absorvido pelo universo de ideias da arquitetura. É nessa primeira experiência que ouço as notas dos contrabaixos, prenúncio de que o estado me sobrevirá. Mais adiante, depois do café e já tendo suscitado as recordações, começo a ouvir os violoncelos e violas. Quando, dentro do museu, vejo as primeiras obras, a melodia reversa nas flautas confirma que estou enfim imbuído do novo espírito e o Concerto para Orquestra, de Bártok, estabelece minha participação integral do lugar.
Apesar do pouco apreço por barulho e multidões, gosto de museus cheios. Dão a impressão de que o interesse pela arte anda em alta e que as obras contam com a identificação do homem comum, esse às-vezes-herói que não teme manifestar-se contra exorbitâncias teóricas. Se há experiência interessante, é a de caminhar tendo estabelecido esses patamares de fruição: o das obras em si; o do que se vê e se ouve a respeito e o da música que rege esse estado. Parece que assim testemunho, além da arte, também a mim desde dentro e de fora, perdido em devaneios entre tantos indivíduos perdidos nos seus.
Reconheci-me, portanto, na obra de Mueck. Sei que tudo o que estava na mostra era a antítese de um museu destinado mais ao Concretismo que a qualquer outra coisa. A escultura hiper-realista não se coaduna àquele espaço e de cara tudo me pareceu extremamente deslocado, desde o gigantesco Casal sob um guarda-sol até a Máscara n.2, provável autorretrato do artista. O pequeno número de peças expostas, nove apenas, também não correspondeu às expectativas. Mas o vazio sempre incita nossa imaginação por sua causa, ainda que estejamos convencidos da necessidade de área livre para abrigar o afluxo de visitantes a uma mostra de apelo inigualável.
Man in a Boat, 2002 |
Mueck aborda, basicamente, esse lugar-comum que se tornou o mundo contemporâneo. Pessoas mergulhadas em si voltam do supermercado após o trabalho, passeiam com a namorada e são esfaqueadas em algum beco por ladrões de telefones. O jovem de Youth olha a própria ferida ao mesmo tempo como Cristo e Tomé, vítima incrédula da violência a ser explicada pelo chavão de uma ideologia qualquer. Cremos todos no algoz metafísico - os reacionários, na índole criminosa do rapaz; os progressistas, na sua imolação pelo sistema opressor. Junto ao mezanino, uma senhora posava com Natureza Morta, o imenso frango pendurado no teto. Era uma dona de casa que, no intervalo das fotos, confessava jamais esperar encontrar ali o que via diariamente numa panela. Não havia ideologia que resistisse.
As figuras de Mueck não riem. Enfastiadas por doses cavalares de niilismo, parecem não compreender o sentido de seus atos nem se importar com o julgamento alheio. São anti-estéticas. Em Young Couple, o rapaz que se desviriliza ao curvar-se ante a mocinha histérica é o mesmo que, visto de trás, tenta subjugá-la pela força, agarrando-lhe o punho. Em Man in a boat a curiosidade de um sujeito esbarra na incapacidade de reconhecer a própria feiura como possível objeto de atenção. Sua nudez pálida não é escondida sequer pelos braços, cruzados apenas para equilibrar o corpo arqueado.
Essa é a arte da solidão e do desdém, uma arte que retrata o isolamento tanto dos personagens quanto do observador que no fim das contas despreza a si e a esses indivíduos. Ron Mueck não oferece respostas, não promete nada; apenas recompõe o mais fielmente essa estupidez coletiva manifesta em interesses passageiros, banais. E quase todos que olham essas pessoas de resina buscam verossimilhanças físicas, apenas isso, sem jamais desconfiar que são os verdadeiros objetos de uma ironia atroz.
Young Couple, 2013 |
Derivado singular da Pop Art, o Hiper-realismo se estabeleceu na pintura com Richard Estes e Denis Peterson e mais recentemente passou por inclementes releituras como a de Gottfried Helnwein. A linguagem caiu no gosto popular e teve a interpretação reduzida a mero capricho técnico por quem pouco ou nada compreendeu de sua essência provocadora. Foi graças a Duane Hanson que a tendência se manifestou mais explicitamente na escultura, levando todos a questionar o intuito da glorificação de pessoas que jamais se interessariam por arte. Faxineiras, donas de casa com carrinhos de supermercado e bobs nos cabelos, pessoas comendo sanduíches, transportadas com cuidado e asseguradas em alguns milhares de dólares, passaram, pelas mãos de Hanson, a ser tão reais quanto as plastificadas modelos de grifes de luxo. Mas hiper-realismo por hiper-realismo, fico com as mulheres de John de Andrea. Também esbarro com dezenas delas diariamente, nas ruas, na praia ou restaurante. São belas e se não se interessam por arte, ao menos não pretendem saturar minha vida com prosélitos da crítica social.
Bartók nada tem a ver com Ron Mueck e meu déja vu naquela tarde foi de pouca utilidade. Reconheci-me na obra do escultor, é verdade, mas não como um de seus personagens, pois consistem todos em paradigmas de uma vida que tentam me impingir e contra a qual luto a cada instante. Pode ser que minha evocação musical consista numa reedição do mito de Pigmaleão e que eu me esforce por restaurar imaginativamente através de sons os ideais abandonados que deram origem àquele museu. Saí de lá sem qualquer dúvida entre a assepsia da abstração e o imperativo de uma arte que retrata o mundo de forma inferior à que vejo. Cheguei em casa e pus o Concerto de Bártok para tocar.
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