quarta-feira, 25 de março de 2015

Arte para a campanha de Barack Obama

Franke - Hope - aquarela e acrílica sobre papel

    A inteligência tirou férias; levou a consciência embora. O senso do ridículo arrefeceu e do alto, pairando sobre nossas cabeças, surgiu ele, o Grande Iluminado. Ele vela por nós, dia e noite. É o novo Deus, que medita sobre a Terra. Ele traz paz, simbolizada por pombas brancas. O rosto na penumbra culmina em luz que banha a testa salpicada de veias. Ele é sereno, mas tem viço. Ele é a força, a única força, porque não há mais indivíduos senão ele. O resto é a comunidade, a comunidade global. O mundo repete em coro o novo mantra: esperança...esperança.
          As férias acabaram e você descobre que esperança por si só não significa nada. Cada um preenche o slogan com o que quer, seja com a volta da ex-namorada, seja com a baixa no preço do combustível, com a cura da doença, a cessão de Israel aos palestinos ou o afastamento do filho das drogas. Cada indivíduo tem um conjunto de anseios subjetivos que são abarcados pelo lema capcioso.
          Apesar de aspirações individuais serem divergentes (alguém duvida?) a armadilha funciona porque o absurdo só é percebido depois, no confronto com a realidade. Ela captura pelo desejo de revanche: a crença de que um homem representaria, no poder, frustrações relegadas aos porões da psique. Obama era a realização do sonho, qualquer que fosse. Obama era o garantidor do revés e, como em todo revés, o homem acaba escravo de quem o vinga. Diante do torpor da razão minha única esperança era o antídoto para essa lógica sórdida: a de não ser objeto da esperança alheia. Se eu desse meu voto, ele resolveria o problema?
          De plantador de árvores a restaurador dos valores nacionais; de reencarnação de Lincoln a porta-voz da Era de Aquário; de congregador das raças a mesmerizador das crianças do mundo, Obama chegou à presidência vendido como herói polivalente, multifacetado. Nem era preciso ser americano ou votar nos EUA para colher os frutos de sua vitória. Bastava ter a tal esperança que ele ia fazer acontecer, mudar a vida para melhor. Era só acreditar na palavra, entrar na onda, sentir o clima, pensamento positivo. Não haveria mais guerra, essa invenção dos fascistas brancos. Não haveria mais competição, essa invenção do capitalismo selvagem; só responsabilidade, aceitação, prosperidade, alternativas e saúde pública, novos mantras do século XXI.
Aniekan Udotio - Here - acrílica sobre
 telaFlashback catártico, com Luther 
King, Tommie Smith, John Carlos, 
coroas, crianças e pombos.
          A manipulação da face obscura do individualismo é a chave de interpretação para o estado das coisas. Não fosse o apelo à fraqueza do sujeito isolado, Obama não se tornaria o fenômeno que se tornou. A esquerda soube tirar proveito disso no mundo inteiro graças a um processo de décadas. Enquanto a direita se preocupava com trabalhar para pagar as contas, enquanto papai e mamãe se apavoravam com os mísseis de Cuba e  Moscou, com as guerras da Coréia, do Vietnã, com Maio de 68, com a maré vermelha e o cabelo comprido do filho - enquanto tudo isso acontecia, pessoas humilhadas objetiva ou subjetivamente por serem gays, perseguidas objetiva ou subjetivamente por serem de grupos étnicos e religiosos minoritários, por odiarem o ensino religioso, por curtirem um baseado de vez em quando, indivíduos sem preparo que caíam de paraquedas nas escolas e universidades achando que teriam um ensino limpo e oportunidade de crescer na vida - essa gente toda era amealhada pelo já aparelhado mainstream intelectual e midiático com o discurso das minorias oprimidas. Junte as minorias, você forma a maioria e toma o poder, simples assim. Deu certo. A direita perdeu.
          Não sou norte-americano nem pretendo pedir asilo em Miami, pelo menos por enquanto, embora admire tudo o que os EUA representam em termos de liberdade. Também não digo que a eleição de Obama tenha sido boa ou má, nem que os americanos tenham se livrado com ele do ódio despertado por Bush ou que tenham embarcado em canoa furada. O episódio de espionagem global pela NSA é um bom catalisador de discussão, mas minha pretensão não vai além de diagnosticar na arte a manifestação desse estado psicológico bastante peculiar para a maior nação do planeta. Houve uma época em que a esquerda americana fundava museus, levava a arte para frente, transpunha barreiras. Houve uma época em que Pollock mijava em lareiras e zombava do formalismo europeu, que Rothko virava as costas para tudo e para todos, que Warhol regurgitava o imaginário popular transfigurado em obras emblemáticas. Esse tempo passou e os caretas agora são outros. A esquerda olha para fora e para trás, para os sentimentos toscos e pueris dos subdesenvolvidos; vai buscar no cartazismo latino-americano e sino-soviético a linguagem que promoverá a mudança, seja qual for. A mensagem é clara: a América deve apostar no delírio Obamista com a mesma candura que camponeses do terceiro mundo se prostram ante o líder carismático, pai do povo, Robin Hood vermelho, foice e martelo cravados no peito do opressor.
Date Farmers - Cambio: O
Founding Fathers voltariam
para a Inglaterra
          Apesar dessa baboseira toda, há oposição nos EUA, eles não são o Brasil. Já em 2008 Simon Schama, o historiador queridinho de American Future e Power of Art, depois de uma de suas performances em que considerava épica a vitória de Obama, levou uma paulada ao vivo do republicano John Bolton e ficou calado. A contagem dava vitória técnica ao democrata e o enfant terrible da esquerda se exaltava quando ouviu em plena BBC que estava querendo escrever a história antes dos fatos. Assisti o debate e foi constrangedor ver o até então rei das sacadas progressistas gaguejar ante a afirmação de que o triunfo eximiria os EUA das acusações de pátria racista. Ele, que sempre tirava coelhos da cartola, foi do circo à realidade em 5 segundos. Também engoli em seco.
          Mas a oposição precisou se acostumar cada vez mais a meios alternativos, programas independentes de rádio e internet, já que nas últimas décadas a grande mídia foi se colocando descaradamente a favor dos democratas. Tão a favor a ponto de na eleição anterior atacar Bush até pelo beijo forçado na mulher durante a convenção partidária. Foi falso mesmo. Enquanto Obama era poupado. Imagens de Michelle o agarrando como Bush jamais sonharia rodavam o mundo e também acabaram virando "arte". Era tripúdio em cima de tripúdio. Obama tinha um passado impecável, era feliz no casamento e ainda por cima contava com proteção por todos os lados. Essa era a alma do negócio. Ele não precisava se defender de nada, tinha à disposição hordas raivosas para acusar algum incrédulo de preconceituoso, teórico da conspiração, de não ter esperança, até que terminassem com a confiabilidade do desgraçado. Na pátria da reputação ilibada muita gente se intimidou. Eu me lembro que, na tv, só se via documentário sobre homens grávidos, crianças que trocavam de sexo e plantações caseiras de maconha. Ninguém podia falar nada. Você absorvia progressismo o dia inteiro, era um negócio forçado. Eu atravessava um período reacionário e abandonei a tv. Ainda não retomei.
Shepard Fairey - Obama Hope Stencil


Puxa-saquismo de cima a baixo


          Na esquerda existe uma disposição para o ativismo que a direita está longe de conceber. Na direita o sujeito perde, é dispensado com um cheque sem fundos e um "Vai procurar outro chefe, imbecil." Na esquerda, não. O camarada continua lá, trabalha de graça, voluntário, depois é chamado, recebe encomendas, tem o nome incensado e fica rico quando as coisas dão certo. O caso de Shepard Fairey é emblemático. Depois que mandou o projeto de cartazes para o Partido Democrata virou celebridade internacional, até em Copacabana apareceu um pichado. Bastava entrar no site, imprimir o arquivo, recortar o papel e estava pronto o estêncil da campanha. Enquanto a direita não aprende o funcionamento do jogo, talentos vicejam só do outro lado. No Brasil então, as coisas são ainda piores. Não conheço nenhum conservador que incentive artistas. É tudo comprador de antiguidades.
          O proselitismo estava por toda a parte. Até Arthur Danto dedicou o ensaio biográfico de Andy Warhol a Barack e Michelle Obama e o fututro da arte norte-americana, matando três coelhos na mesma cajadada: o panfletário, o feminista e o da manutenção da crença de que só existe arte na esquerda. Mas Danto é inteligente no que faz. Pode não ter um décimo da originalidade que computam, mas quer ser lembrado como teórico e historiador da arte sério, e nisso tem competência. Você joga fora a instrumentalização e nem sente a diferença.
          Já o panfletarismo barato é o botão de descarga da consciência. A quase totalidade das obras criadas para a campanha de Obama sequer seria creditada como arte se estivesse a serviço do Partido Republicano, da candidatura de Sarah Palin ou do xerife de um condado qualquer. No máximo seriam tidas por brincadeiras chulas, trocadilhos publicitários apelativos ao sentimentalismo popular, meros caça-votos. Dariam ótimos grafites em muros do Bronx, em galpões de Detroit ou nas pilastras de uma autoestrada em Los Angeles (Shepard Fairey, o autor do cartaz Hope, é artista de rua), mas como estavam a serviço da esquerda chique, deixaram de ser patacoada eleitoreira para acabarem alçadas à categoria de renovadoras da arte americana. Foram institucionalizadas da noite para o dia, logo apareceram em museus e galerias sob o contexto de Manifesto da Esperança e ganharam o lustre da teoria acadêmica. O mainstream é assim. Os herdeiros copiam a a estrutura, o funcionamento do sistema que receberam, mas já não têm a alma desbravadora dos antepassados. Quando o republicano Schwarzenegger foi a uma dessas exposições Manifesto da Esperança, acharam que era invasão de território. No Brasil, visitou antiquários em Copacabana. Absorveu os preceitos locais.
Judy North - Barack and Michelle - aquarela


Sonhos da noite passada


          Um dos approaches da campanha de Obama foi desde o início o revival sessentista e setentista. Eleito, ele teria uma espécie de mandato post-mortem de Kennedy, seria um Jimmy Carter mais seguro, confiável, com a vantagem de ser negro e ter o discurso atualizado.
          Os conservadores tendem a criticar essa obsessão dos progressistas, como se atacando os anos 60 conseguissem desmerecer a antiguidade clássica da esquerda vigente. A azia é insuportável, mas não adianta, é preciso dar um fim à ruminância de 50 anos, e isso só com digestão. É preciso deixar que ocorra. Na arte atual só se vêem derivados da época: de um lado, conceitualismos e a assepsia minimalista, de outro o discurso orgânico do culturalismo, o poder catártico do grito primal, energias pé-na-terra, ambientalismos primitivistas - às vezes tudo fundido e misturado.  É claro que isso é uma generalização, mas o campo onde as coisas estão é basicamente o mesmo. Depois de uma onda clean, nos anos 2010 voltaram à moda as bocas-de-sino, a armação grossa para os óculos e cabelo volumoso. Não tem jeito. É preciso expurgar, deixar vir o último suspiro daquela época. O futuro chegou e como não viramos hippies nem exploradores do espaço, testemunhamos o veranico. Obama representa o fim dos anos 60. Depois, só restará partir para outra.
          Enquanto isso, vai sendo difícil explicar para quem está na faixa dos 20 anos e já vota mas confunde as coisas que os Beatles não eram música para nerds e que o penteado da época não tem nada a ver com emos. É difícil fazer entenderem que o Sargent Pepper não é apenas um boneco fofinho e que psicodelia era fruto de ácido lisérgico, não de programas de computador. Hoje todo o mundo acha que ser um Rolling Stone é vestir camiseta da banda e ir passear no shopping, em vez de ter a mesma liberdade que Mick Jagger tinha, nutrir identidade própria, ter tino empresarial, mente aberta, criativa, e ousadia para fazer a vida. Os rebeldes atuais estão na direita; os da esquerda são burocratas domesticados.
Michael Cuffe -
The Hopeful Hearts Club -
técnica mista sobre tela
Alô! O Timothy Leary está?
          Na cabeça do cidadão comum também é difícil entrar a idéia de que existem valores para além dos econômicos. As grandes cidades estão a cada dia diferentes, empregos mudam, lojas abrem e fecham, produtos surgem e desaparecem no mercado, vizinhos são verdadeiros nômades, reféns de bolhas e especulação imobiliária. Executivos de corporações pouco se importam com a guerra ao terror, com a moral cristã por trás da negação ao casamento gay, com operações militares no Afeganistão e tempestades em desertos que nem sabiam que existiam. Na maioria das vezes nutrem uma visão empresarial do mundo. O que querem é ascender na carreira, ganhar dinheiro e curtir a vida, sem perder tempo com lucubrações da análise cultural.
          O discurso de Obama atendia a esse estranho arranjo de tensões entre dinamismo e paralisia, rebeldia e acomodação, idealismo e pragmatismo da vida contemporânea. Quem iria garantir uma solução para isso tudo? O Estado, é claro. Nada melhor do que reclamar, se fazer de vítima de algum ente genérico, do sistema, da sociedade, de ódios passados, e ganhar entre outros benefícios o selo de autenticidade estatal e o direito de ofender quem paga a conta. A culpa é sempre dos outros. O engajamento político mascara a falta de objetivo na vida, canaliza a frustração. Sentir-se integrante de um projeto coletivo, de um contingente que prega a tal esperança, é um alívio para a angústia da existência. (Meu interesse pela escultura de Ron Mueck vem daí. Ele retrata esse mesmo tédio metafísico, a mesma solidão idiota, o mesmo sentimento de vazio sem me empurrar a esperança fajuta. É crítico mas não é instrumentalizado, pelo menos até a data em que escrevo.)
          Mas afinal, onde quero chegar? Bastante simples. A arte para a campanha de Obama precisava cafetizar a antiguidade clássica da esquerda de qualquer jeito. Avós precisavam se comover, precisavam se lembrar de quando eram mocinhas nos anos 60, para convencerem o neto a votar no democrata. A juventude entediada pelas benesses do capitalismo precisava acreditar que finalmente se apoderaria da narrativa gloriosa do é proibido proibir, do sex lib idealizado, para poder subjugá-la à sua própria caretice reivindicatória pós-moderna. A contestação na marra dos Panteras Negras, dos atletas olímpicos de punho cerrado, o autoritarismo por trás do cartazismo socialista terceiro-mundista, os roqueiros mortos de overdose, tudo isso precisava ser filtrado, higienizado, para agradar ao público em geral e ninguém se sentir amedrontado ou ofendido. Qualquer demonstração de força individual precisava ser meticulosamente retrabalhada, já que o rebanho ama ídolos e odeia indivíduos. O resultado precisava ser um "Que bonito!" de quem estivesse vendo as imagens sem perceber que o novo Deus, o Grande Iluminado que vela por nós dia e noite, era retratado sempre olhando para a esquerda.
          Tudo isso, enfim, é propaganda, engenharia de comunicação. Se as idéias para essas obras tivessem partido de uma visão autêntica e verdadeira, de uma renovação coletiva do estado de espírito, de uma pujança intelectual, e não de um processo de construção de um personagem, teriam florescido também em outras artes. Teriam dado origem a muita música boa, como deram em São Francisco, Woodstock e Monterey. Mas fora a meia dúzia de cartazes, o resultado cultural da empreitada foi nulo, porque os partidários de Obama revisitavam a estética dos anos 60 mentirosamente, como se a submissão da arte ao poder institucionalizado não representasse a negação mesma dos ideais libertários a que a produção da época se referia.
          Obama ganhou. E a arte não levou.

Larissa Marantz - Unite America -
  
acrílica sobre tela
Cidadãos constróem a imagem
de Barack Obama. Propaganda
com sabor de ato falho.
Joseph Aloi - Obama and the
kids of the world
-
técnica mista
Psicodelia e culto à personalidade

atualizados por emoticons.


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