terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Os desenhos de Chrystian Peixoto


Marcados por influências do expressionismo e da psicodelia, os desenhos de Chrystian Peixoto abordam temas humanos e regionais potencializados por um rico imaginário. Essas criações a lápis, canetas coloridas e nanquim são de verve espontânea e apresentam cenas povoadas por manifestações da mente e da natureza. Nelas, a espacialidade segue concepções alternativas. Poucas áreas são deixadas em branco, numa constante substancialização dos vazios.  

Personificando ideias que se correlacionam, os elementos dos desenhos de Crystian possuem autonomia e caráter. Dos personagens emanam fluxos de formas e cores, fazendo com que pairem no ar ou vagueiem sobre um chão, de onde emergem rostos que se propagam no horizonte. No conjunto da produção, identificam-se recorrências, como o sol, estradas e libélulas. Mais do que um simples repertório visual, esses elementos atuam como símbolos, evocando ideias. A estrada, relacionada à vida, remete ao destino, a um caminho a ser seguido. O sol é uma fonte de energia e poder; ele rege, dá orientação e sentido. Já as libélulas evocam a pureza, anunciam a chuva, a renovação, e também denotam encanto, por serem duplamente aladas.


Mas esses elementos podem guardar significados ainda mais específicos que, quando descobertos, redirecionam a compreensão da obra. Ao sol, por exemplo, Chrystian associa a justiça e a luz divina, lembrando das forças que instituem paz e alegria, ao ordenarem o caos.

Para além do protagonismo temático, as figuras humanas revelam-se, muitas vezes, a causa mesma das cenas. Geralmente sob estímulo psicológico ou emocional, estão empenhadas em danças, encontros ou situações propícias à manifestação de forças interiores. Quando não estão representadas na totalidade, suas partes extravasam essa energia - notadamente mãos, rostos e também pernas, que se abrem para o nascimento. Por toda a composição reverbera o estado de espírito dos personagens, revelando o teor expressionista das obras.

No aspecto formal, as figuras femininas contribuem sobremaneira para a fluidez do conjunto, seja pelos vestidos esvoaçantes, seja pelos cabelos que, longos, relacionam-se à variedade de elementos ondulantes da composição. Frequentemente, aparecem cercadas de bocas e olhos, o que provoca estranhamento pela sensação de ruptura em nossa relação com a obra enquanto objeto. O observador torna-se, também ele, observado.

Os desenhos de Chrystian Peixoto demonstram a todo instante que, ao contrário do que propagam certas ortodoxias recorrentes, o figurativismo não se restringe à repetição do consensual e do visível. Ao deixar de lado prejulgamentos morais e predeterminações da cultura, verdadeiros condicionadores criativos, o artista torna-se livre para explorar qualquer tema: abre-se para experiências interiores, inventivas e imaginativas; deixa-se levar por fantasias, sonhos e desejos para além da realidade material. Numa valoração particular, Chrystian oferece uma reinterpretação dos elementos de seu próprio cotidiano, seguindo, assim, uma lógica subjetiva, desvelando polissemias e novos símbolos, desenvolvidos a partir dos já conhecidos.

Ao fruidor, cabe abertura de espírito; cabe uma disposição favorável ao estabelecimento das relações e associações apresentadas pelo artista, que são muitas vezes surpreendentes. Seria um equívoco a busca de prescrições nessas obras, tanto quanto sua consideração desde pontos de vista meramente sociológicos ou antropológicos pelo fato de abordarem elementos de determinado meio cultural e geográfico. O conceito de regionalismo aqui deve prescindir de qualquer noção centralizadora, assentando-se, em vez disso, numa concepção plural e abrangente da experiência humana. A arte é, em essência, universal. Suas manifestações são metonímias: apontam para um todo, através de suas partes.

Os desenhos de Chrystian revelam um mundo fantástico, tantas vezes mais verdadeiro que o racional - um mundo criado pelo artista a partir de si, de suas vivências, circunstâncias e de um sensível imaginário.


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Do esquadro aos pincéis - A pintura de Manoel Novello

'Polytheama' - Acrílica sobre tela, 100 x 210 cm 


Manoel Novello trilhou um percurso singular nas artes. Formado arquiteto, transferiu-se para a pintura, onde desenvolveu uma proveitosa investigação a partir do instrumental já adquirido. Fruto de um olhar arquitetônico, sua obra é influenciada pelo cenário urbano, o que pode ser atestado em títulos como 'Janela 2' e 'Panorama Ampliado'. Sua produção também rende homenagem a tradicionais locais públicos, em especial do imaginário carioca, como o bar Amarelinho, o aeroporto Santos Dumont, o cine Polytheama e a estação Central do Brasil.

Apesar das correlações com cenários existentes, as obras de Manoel se sustentam integralmente sem os títulos. Isso porque não são repetições visuais daquilo que é diretamente vivenciado. Mesmo que, vez ou outra, identifiquem-se reminiscências formais de seus pontos de partida, a chave de sua fruição não está na alusão nem no conhecimento dos objetos de referência. As criações decorrem de um processo de inspirações e evocações subjetivas, resultado das experiências pessoais e pesquisas pictóricas do artista. 

Manoel costuma ressaltar o caráter transcendente de sua produção. Se, para o cético, a observação parece condicionar o sentido das obras a aspectos extra-artísticos, uma compreensão mais ampla dos fatos logo revela uma interpretação que prescinde de qualquer crença. Essa transcendência refere-se a algo que ultrapassa a simples materialidade das coisas e a relação humana com o mundo baseada na dissociação entre sujeito e objeto.

Existe um fundo comum entre o humano e a totalidade da natureza e do universo, ao qual a arte, como a ciência, a filosofia e a religião, é uma via de contato. Existe uma transcendência no fazer artístico, pois o artista produz algo, uma obra, materializando ideias que antes conservavam-se apenas abstratamente, como possibilidades. Existe, portanto, uma transcendência na obra, já que esta consiste de um meio de acesso a ideias que escapam à ordinariedade do mundo conhecido - um meio empregado por um indivíduo, em uma linguagem específica - no caso, a pintura - que não pode ser traduzida nem substituída por outras linguagens.

Sem se filiar a correntes predeterminadas, Manoel Novello prossegue uma investigação sobre cores, linhas e tramas que remonta aos Construtivistas russos, a Mondrian, Joseph Albers e François Morellet. Sua contribuição a essas vertentes está no desapego a ortodoxias e na atualização do horizonte de referenciais criativos. A tela 'Polytheama' oferece um exemplo dessas proposições. Ao empregar tramas sobrepostas, dispostas em ângulo de 30 graus, o pintor abre espaço a uma exploração dos efeitos e possibilidades de suas correlações. Conectando os cruzamentos das tramas, estabelece sugestões de figuras tridimensionais que são, no entanto, deixadas em aberto. O recurso confere dinamismo à experiência visual, como se da superfície eclodissem vetores, cujas linhas estão a ponto de estruturar figuras tridimensionais. Tal efeito é acentuado pelo contraste entre essas linhas e suas tramas de origem.

'Polytheama' - detalhe

Já envolvido nessa interação com a obra, o observador completa então, imaginativamente, as sugestões de figuras tridimensionais. Mas o faz sem desconsiderar que a tela possui apenas duas dimensões, está estruturada a partir de sobreposições e seus demais elementos não receberam nenhuma ilusão tridimensional, como sombras, contornos, perspectiva ou atmosfera. O olhar perscruta a obra, apreendendo as sugestões volumétricas para, em seguida, atestar a reafirmação de sua bidimensionalidade. Enquanto essas operações são realizadas, uma outra divisão da superfície, em campos de cor a 90 graus, altera ou contrasta com os tons das demais tramas às quais está sobre ou subposta, gerando efeitos pulsantes.

Se à frieza tantas vezes associada à ortogonalidade o pintor já contrapõe esse jogo de relações e justaposições, multiplica ainda mais a experiência visual, empregando variações tonais, dispondo sequências das tramas em relevo e introduzindo elementos e interrupções que negam continuamente as previsões e antecipações do observador.

A conexão de tramas explorada por Manoel e a fatura da tela por camadas evoca a axonometria empregada na representação dos desenhos arquitetônicos. Tanto quanto paralelismos com o histórico urbano do autor, trata-se da elaboração das experiências gráficas e perceptivas adquiridas em sua formação como arquiteto. Com a transição para as artes visuais, Manoel levou para a pintura essa potencialidade plástica, seguindo, na nova linguagem, uma trajetória criativa deliberadamente não-figurativa.

As obras de Manoel Novello cativam por uma complexidade que não compromete sua compreensão. Mesmo quando levado aos limites da apreensão e da lógica visual, o observador reconhece e vivencia a experiência para a qual é convidado. Especialmente nas telas de grandes dimensões, há uma intenso diálogo entre sujeito e objeto e uma constante relação entre o possível e o impossível, entre a lógica e sua ruptura, entre o que está representado e o que é completado imaginativamente, seja na tela ou pela transcendência de fala o artista.


sábado, 27 de julho de 2024

Quincas Berro d'Água, uma obra-prima de Francisco Mignone

O maestro Francisco Mignone e Maria Josephina Mignone

No final da década de 1970, o octogenário compositor Francisco Mignone (1897-1986) lançou-se a uma criação de peso inspirada no Quincas berro d'água, de Jorge Amado. A novela, de 1959, havia sido adaptada recentemente para a tv, tendo Paulo Gracindo, Dina Sfat e Stenio Garcia nos papéis principais. O enredo estava fresco na memória do público e, com o sucesso da exibição, ficou claro que ainda havia oportunidade para a exploração do tema. Em 1978 foi lançada na tradicional livraria Leonardo da Vinci, Centro do Rio de Janeiro, uma reedição do livro com desenhos de Carybé. O evento contou com presença do escritor baiano e uma exposição dos desenhos originais também foi inaugurada numa galeria da zona sul carioca. Tudo indicava que a história culminaria num filme.

A música de Mignone foi composta nesse período e levada a uma audição fechada em dezembro de 1979, da qual Jorge Amado saiu entusiasmado. A ideia de encená-la como balé havia sido preestabelecida e a estrutura em episódios acompanhava a adaptação do texto, feita por Guilherme Figueiredo. Ficou então acertado que os cenários e figurinos seriam baseados nos desenhos de Carybé e a coreografia ficaria a cargo de Gilberto Motta.

A qualidade da criação de Mignone já era conhecida pelos que haviam participado da audição quando, em abril de 1980, uma gravação a cargo da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regida por Henrique Morelenbaum, precisou ser feita para os ensaios do corpo de baile. Sem que se saiba como, uma cópia da gravação acabou nas mãos dos responsáveis pelo Ballet Brasileiro da Bahia, grupo de dança tradicional que apresentava uma coreografia folclórica para a obra do escritor baiano. Graças ao vazamento, logo após a estreia, a música de Mignone podia ser ouvida  no Municipal e também alguns quarteirões adiante, no Teatro João Caetano, reproduzida em fita magnética e acompanhada de danças populares, conforme nossos consagrados métodos de apropriação cultural.

A estreia oficial do Quincas, de Mignone, em 31 de Julho de 1980, no Theatro Municipal, resultou num estrondoso sucesso. Revelou um compositor em incrível atividade que, no mesmo ano, concluía também seu Duo Concertante para clarineta, fagote e orquestra, trabalhava nos bailados Maria, a Louca e O Caçador de Esmeraldas e finalizava um pequeno livro sobre a história da música no Brasil. O nome de Mignone aparecia nos cadernos de cultura dos jornais tanto pela produção quanto pela preocupação com os direitos autorais dos artistas brasileiros. As apresentações continuavam, gravações de suas obras eram lançadas, como a de Moreira Lima dedicado às Valsas de Esquina, e era praticamente inconcebível que um compositor daquela idade continuasse a trabalhar tanto.

Trecho de matéria publicada no JB de 22 de Maio de 1980

Em Quincas berro d'água, Mignone revisita material da juventude, reelabora temas de sua Suíte Brasileira e os dota de uma exuberância equivalente à dos anos de florescimento como artista nacional. A orquestra vibra, os temas apresentam-se em renovações constantes, mantendo vasto espectro de cores e sutilezas de caráter. O compositor, que havia estudado em Milão, sido influenciado por Mario de Andrade, Ernesto Nazareth, pela origem italiana, pelo universo popular evidenciado no singelo pseudônimo Chico Bororó, retribuía numa única obra tudo aquilo que o Brasil lhe havia proporcionado por toda a vida.

Como Villa-Lobos, Mignone trabalha com alternâncias de estados de espírito. Vai da derrota ao triunfo em um compasso. Une a alegria ao trágico, a impostura ao drama e, quando o ouvinte acredita que os episódios atingiram o ápice, exacerba a mensagem, dando novo sentido à compreensão da matéria musical. As referências são tantas a ponto de o compositor revelar, em uma entrevista, influências até mesmo da música eletrônica. Quincas é a apoteose de um personagem vagabundo, que se entrega à vida e encontra na consumação da tragédia seu momento de glória. Uma história dessa não poderia deixar de receber música repleta de reviravoltas, pulsações, mistérios e, claro, o inconfundível sabor da orquestração de Mignone.

Graças à boa acolhida, os desenhos de Carybé saíram em novo livro com fotos do espetáculo e a Orquestra Sinfônica Brasileira apresentou a obra mais vezes, uma delas na V Bienal de Música Brasileira, de 1983.

Mas a história da nossa música guarda injustiças incompreensíveis e o fato de Quincas ter angariado tanto sucesso, participado do conjunto de criações surgidas no esteio da criação de Jorge Amado e, ainda assim, ser praticamente desconhecida, nos deixa imersos em perplexidade.

Com a morte de Mignone, em 1986, Quincas berro d'água foi novamente executada pela OSB nos jardins do MAM RJ e em outro concerto, em homenagem ao centenário de Villa-Lobos. Atualmente existem duas gravações da peça, uma de 1981, ao vivo, com Henrique Morelenbaum e a OSB, e outra mais recente, gravada em cd em 2001 pela Orquestra Sinfônica do Recife sob a regência de Carlos Veiga, que é pouco divulgada. Apesar de a qualidade sonora da última ser evidentemente superior, a mais antiga, influenciada pelas orientações do compositor, é mais apurada e rica, de uma verve toda própria, que nos faz a todo instante perguntar: Por que uma obra-prima como essa continua relegada ao esquecimento?


terça-feira, 18 de junho de 2024

Suzana do Amaral, artista do papel machê


Suzana do Amaral artista
Pedaços de mim
Papel machê sobre eucatex

Foi numa das tardes quentes do Rio que conheci as obras de Suzana do Amaral. A exposição Reflexivas, no Centro Cultural Correios, apresentava uma seleção de seus trabalhos, com curadoria centrada em memórias afetivas, considerações ambientais e aspectos histórico-pessoais. A opção me pareceu tímida de início, mas se mostrou correta. Esses fatores são importantes para a produção de nosso tempo. Inserem o artista em contextos mais amplos, colocam-no em diálogo com a sociedade e levam o fruidor a reconhecer, nas obras, temas urgentes de sua própria vida. Mas pretendo aqui tecer comentários de outra natureza, a respeito das obras de Suzana do Amaral em si mesmas, ou seja, em seus aspectos composicionais e de linguagem, já que são trabalhos dignos de maior atenção desde esse ponto de vista mais específico, que é o da arte.

Suzana do Amaral nasceu em Barra do Piraí, Rio de Janeiro, em 1969, e desde os anos 90 dedica-se a obras tridimensionais em papel machê. A técnica consiste na trituração de papel embebido em água e no trabalho sobre a massa resultante, mantida coesa pela adição de cola e, eventualmente, outro elemento enrijecedor, como o gesso. O manejo pode dar origem a materiais dos mais lisos aos mais corrugados, variáveis conforme o grau de compressão, trituração e as características do papel escolhido. Para conferir heterogeneidade à massa, diferentes papéis podem participar da mistura, com diferentes cortes e graus de trituração.

O papel machê, tão empregado no artesanato e paramentos de festas populares, é explorado por Suzana em múltiplas outras potências. Pela experimentação de volumes, texturas, espessuras, consistências, pigmentação e misturas, adquire novo status, revelando uma ampla gama de possibilidades criativas e expressivas. Se outros materiais concorrem, vez ou outra, para as obras, como plástico, ferro e cimento, é o papel machê o cerne de toda sua inventividade.

Rejeitando o acaso, as obras de Suzana são produto de uma construção de relações. Projeções volumétricas surgem aqui e ali, estabelecendo ora conjuntos, ora complementos antitéticos entre cheios e vazios, positivo e negativo, formas definidas e indefinidas, estado potencial e consumado. Evocações biológicas, cósmicas, culturais e telúricas se fazem presentes, bem como sugestões arquetípicas masculina e feminina. As formas, no geral, não consistem da representação de figuras nem de elementos conhecidos. Não são meramente alusivas. Instituem, em vez disso, analogias que preservam a obra enquanto de natureza e caraterísticas próprias, corporificando as ideias das quais participam.

Suzana do Amaral artista
Papel machê e tinta acrílica sobre eucatex

A cor nessas criações não é explorada nem para grafismos nem com a finalidade de surtir efeitos decorativos. Atua como atributo da matéria. Mesmo se aplicada posteriormente, age de modo que cada elemento seja percebido como de origem e função específicas. Os tons são terrosos em sua maior parte, e comedidos. O preto destaca-se pelo brilho, enquanto o vermelho, verde e marrom tendem ao fosco. Tal partido cromático, de tons presentes na natureza, mantém a obra livre de associações com o simulado e o artificial, traçando paralelismos com relevos e organismos em multiplicação.

As criações de Suzana requalificam materiais e relações, reordenam o heterogêneo, aquilo que um dia existiu sob outro arranjo e propósito. Guardam, por isso, um quê de cíclico, cuja anterioridade é apenas parcialmente conhecida. Remetem a certo formalismo moderno, bem como ao pós-minimalismo e à Land Art, mas têm os pés fincados nas questões contemporâneas mais atuais. Para além de um mero arcabouço discursivo, as considerações ambientais da artista são uma práxis que tem nas obras seu verdadeiro produto. Suas memórias afetivas e aspectos histórico-pessoais participam, assim, como componentes na geração de ideias, não como pontos de inflexão saudosista. O tempo, aliás, passa calmo em suas obras, quase imperceptível, contribuindo para o resultado de equilíbrio e discrição.

Numa época de fetiches econômicos e teóricos, as obras de Suzana do Amaral preservam a sinceridade da arte. Guardam o sabor do livre-fazer, desapegadas de luxos e frivolidades. Demonstram, desde os preceitos conceptivos, que é na elementaridade das coisas onde estão as respostas para a crise de nosso tempo.

Suzana do Amaral papel machê
Papel machê e tinta acrílica preta sobre
madeira reaproveitada



domingo, 14 de abril de 2024

Danilo Ribeiro na Galeria Artur Fidalgo

 

Danilo Ribeiro - "Cinelândia", 2024
Acrílica e grafite s/ tela 112 x 150 cm


Quem esteve na Galeria Artur Fidalgo para a abertura de "Idílio Tropical", pôde acompanhar a estreia do mais recente capítulo da trajetória do pintor Danilo Ribeiro. Danilo, que na década de 2010 explorava as relações intrínsecas de sua geração com a linguagem dos videogames, voltou em seguida seu olhar antropológico para o cenário urbano, abordando personagens e a iconografia carioca. Agora, em sua nova série, se debruça sobre conhecidas paisagens do Rio de Janeiro.

É fato que cada geração não apenas vive uma cidade diferente, mas a compreende, estetica e existencialmente, de um modo particular. A paisagem pode ser a mesma, ou com pequenas ou grandes alterações, mas as consciências que nela habitam mudam, renunciam a antigos julgamentos e voltam o interesse para outros aspectos da vida e urbanos. Assim, a cidade se transforma não apenas porque prédios e viadutos foram construídos ou receberam novas cores, mas porque novos olhares a percebem, sob novas égides e perspectivas. O tal espírito do tempo é espírito precisamente por isso: por ser imaterial, e Danilo se encarrega de apreender e estabelecer essas novas dimensões pelas quais o cenário urbano é registrado e vivenciado.



Mantendo-se fiel ao observável, Danilo lança uma visão própria sobre essas paisagens tão conhecidas. E é a experiência conquistada em trabalhos anteriores que possibilita que as diferentes dimensões coexistam nas imagens, num diálogo do atual com a tradição de pintores e fotógrafos observadores do cotidiano carioca, como Debret e Augusto Malta. Para os familiarizados com esse repertório, um ar nostálgico permeia uma ou outra obra, mas prevalece sempre a vivência atual, o testemunho do que a cidade tem de mutável e imutável, dos que hoje nela circulam e habitam.

As paisagens de Danilo são sinceras, sem afetações nem ufanismos. Discreto, sua personalidade não se sobrepõe aos temas. Ele deixa que as imagens falem por si, livres da interferência de mensagens explícitas ou subjacentes. Não embeleza, tampouco esconde. Seu pensamento está na escolha mesma dos temas e seu compromisso é com a cidade e com quem a ama, com sua história, sua graça e ângulos peculiares.



Com curadoria de Vanda Klabin, a seleção de acrílicas, guaches e aquarelas de Danilo para a mostra "Idílio Tropical" oferece uma comunhão ao redor das experiências de um Rio de Janeiro que não cansa de fascinar. E proporciona ao carioca de hoje um reencontro consigo mesmo.



segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Adeus ao Maksoud Plaza Hotel

Na última vez que estive em São Paulo, me hospedei no Maksoud Plaza. O hotel foi construído no final dos anos 70 por Henry Maksoud, empresário das antigas, bastião do liberalismo econômico e responsável, entre outras façanhas, pelas obras do Galeão, no Rio de Janeiro.
O projeto do edifício é de Paulo Lucio de Brito, que cuidou dos detalhes para tornar o empreendimento uma referência também arquitetônica em hotelaria. Em Estilo Internacional e flertando com o Brutalismo, o interior foi finalizado com painéis de Maria Bonomi, telas de Alfredo Volpi e Tomie Ohtake, um bronze do espanhol Diego Ortega e a icônica escultura pendente de Yutaka Toyota sobre o lobby principal.
A lista de hóspedes ilustres do Maksoud é imensa e vai de Ray Charles a Margareth Thatcher, passando por Mick Jagger, Björk, Pedro Almodóvar e os príncipes de Mônaco. No auditório se apresentaram lendas como Frank Sinatra, Tom Jobim, Julio Iglesias, Billy Eckstine, Michel Legrand, Earl Hines e Sammy Davis Jr. Os concertos semanais de jazz se tornaram célebres e as festas de fim de ano se consagraram pela elegância.
Do mundo do entretenimento à economia e política, inúmeros negócios e acordos foram firmados nos salões e suítes do hotel.
Apesar da história fascinante, as dificuldades enfrentadas pelo Maksoud eram evidentes na última vez que estive por lá. As janelas já não eram das mais limpas, uma rede de contenção no lobby alertava da possível queda de detritos e o serviço de reservas estava confuso. Fui colocado num quarto uma categoria abaixo da contratada, mas tudo acabou numa compensação diária em iguarias.
Desde o fim dos anos 2000 o Maksoud se arrastava num imbroglio, atolado em cobranças. A morte de seu fundador, em 2014, tornou a situação ainda mais crítica, até que, em Dezembro de 2021, o hotel encerrou as atividades.
Ficaram as recordações de tempos que não voltam mais.







quinta-feira, 31 de março de 2022

Arte para além da bolha

Quem quer que saia da bolha e acompanhe o que, de fato, há na atual produção de arte, percebe que vivemos um período de múltiplos ecletismos. Já não se pode dizer nem mesmo que grandes projetos - estilísticos, ideológicos, de linguagem, os ismos - morreram, porque a própria ideia de um projeto para a arte está sepultada. O artista de hoje segue objetivos e processos criativos próprios, dá continuidade a vertentes que julga passíveis de exploração. Ao lado dos NFTs, a pintura tradicional, de cenas e retratos, continua seu rumo pelas mãos de pintores independentes ou agremiados em sociedades mantenedoras de antigos gêneros. Obras tridimensionais, derivadas das instalações e assemblages, performances, propostas sonoras, olfativas, táteis - tudo isso convive com a velha prática de figuras e bustos em bronze e mármore. O fim da História, o fim da beleza, o fim da Arte, o fim disso, daquilo - o tempo dos manifestos e declarações impactantes ficou para trás e as incursões por esse terreno soam demodées, merecendo, no máximo, uma condescendente risada.

Roberto Ferri - Prisão de Lágrimas
óleo sore tela, 40 x 60 cm

As coisas tomaram orientação mais aberta e, hoje, por mais que alguém prefira linguagens novas, dificilmente deixará de reconhecer o valor de um Roberto Ferri, por exemplo. Há duas décadas nomes como Ai Weiwei, Ron Mueck, Anish Kapoor e Olafur Eliasson arrebanham multidões para mostras de circuito internacional sem que os ataques dos que desprezam a arte contemporânea surtam qualquer efeito. Tampouco importa o intelectualismo dos que desdenham do gosto do público e de artistas populares como esses. Vaticinar que não representam a arte contemporânea, que lhes falta conteúdo, qualquer que seja, que tal ou qual obra atenta contra a moral e os bons costumes, que a produção atual é um lixo - tudo isso encontra ressonância apenas em nichos sectários.

Olafur Eliasson - The Weather Project, 2004

Esse processo de diversificação ocorreu sem dúvidas por razões econômicas, afinal oferta e demanda se atendem. Mas o fetiche economicista ficou igualmente para trás, dando espaço a outras visões, tão ou mais importantes para a compreensão de fenômenos históricos e culturais. No que se refere ao cenário de artes, um dos fatores é o descrédito em que caíram os críticos e historiadores. Basta ler textos de exposições para se atestar que os primeiros perdem-se facilmente em uma linguagem confusa, repleta de jargões. Ler esses textos é ter a impressão que podem significar qualquer coisa, ou absolutamente nada. Já os historiadores abraçam grandes construções, de belíssima envergadura, mas que em grande parte se sustentam pelo que deixam de fora. Histórias da Arte devem ser vistas como a exposição de uma linha geral de contexto e criação, não como autoridades eliminadoras de autores e obras. Histórias da Arte são essenciais, tanto quanto é essencial deixá-las de lado para se entender, de fato, o que é a Arte, que se encontra em obras, não na História.

À já conhecida democratização do acesso à informação pela internet segue-se o declínio dos órgãos de imprensa, que abdicaram das seções culturais. O jornalismo de hoje contenta-se com a disputa política, com a derrubada ou defesa de nomes e, quando abordada, a arte é quase sempre diminuída, rebaixada ao entretenimento e lugar-comum, quando não confundida com a indústria cultural. Nas raras ocasiões em que lhe é concedida abordagem mais específica, a exiguidade de espaço impede o desenvolvimento de análises. Ler jornais hoje é se perguntar se seriam possíveis fenômenos da crítica como Robert Hughes, Brian Sewell, Michael Gibson, Mario Pedrosa - e saber de antemão que a resposta é negativa. Críticos hoje se fazem por meios próprios, não estão mais em uma relação de agregação de valores com veículos de comunicação. Isso é lamentável pois a falta de projeção de vozes contribui para a manutenção de bolhas de pensamento, inclusive a dos próprios críticos, que acabam aprofundados no especialismo, cada vez mais distantes do público.

Acompanhar a produção de arte hoje é tarefa individual e personalizada. É eleger os próprios referenciais, seguir perfis de artistas no instagram, páginas de revistas e galerias, fazer pesquisas online, ler análises e comentários independentes. E, claro, frequentar o circuito de exposições. Essas práticas, quando não cerceadas por ditames ideológicos, levam à descoberta e ao cultivo do trabalho de uma plêiade artistas que seguem as mais variadas tendências e linguagens. Levam a novas leituras e novos julgamentos para demais âmbitos da sociedade e também a possibilidades, novas e esquecidas, para a vida. E levam sobretudo à desconsideração dos que se arvoram ao proclamar o fim da arte, o fim da História, o fim da beleza, disso ou daquilo. Slogans são deformadores da realidade. São um condensado de ideias previamente selecionadas com o objetivo de limitar a visão e compreensão dos fatos. Os que abandonam a bolha entram em contato com um universo rico, em que as conquistas e interesses humanos coexistem de formas múltiplas e complementares.

Paulo Vivacqua - Nympheas, 2015
Vidro, espelho, alto-falantes e amplificadores


domingo, 20 de fevereiro de 2022

A Afirmação Modernista no Paço Imperial

Entre as décadas de 1930 e 1970, a consolidação das instituições públicas do país esteve acompanhada por iniciativas de fomento à arte. Pintores e escultores eram contratados para executar painéis em edifícios, telas e esculturas eram adquiridas para acervos, exposições e premiações eram organizadas. Assim, diante do tímido mercado interno, o Estado aparecia como um dos pilares econômicos da produção nacional. Essas iniciativas, porém, não eram contínuas e nem sempre atendiam a critérios muito claros. Não raro eram coordenadas por artistas que figuravam entre os próprios servidores das instituições, e que colaboravam, a seu modo, com o empreendimento.

Com o redirecionamento econômico a partir dos anos 90, vários desses órgãos estatais foram privatizados e deixaram como legado seus acervos. Um deles é o pertencente ao antigo Banerj, atualmente mantido pela Funarj e selecionado para a mostra A Afirmação Modernista, no Paço Imperial.

Quem frequenta o circuito cultural do Rio de Janeiro reconhecerá alguns dos destaques. As telas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, Emeric Mercier e Manabu Mabe estiveram ainda há pouco em outras mostras, no BNDES e CCBB. Mas o que torna especial A Afirmação Modernista não é propriamente uma ou outra obra, e sim a possibilidade de se conferir esse acervo em um só lugar. Desse modo, além de apreciar telas e gravuras, o visitante pode confrontá-las entre si, frente ao conjunto, questionar as escolhas de aquisição do banco - enfim, uma oportunidade que tão cedo não deverá se repetir.

Eugenio Sigaud comércio rua exposição afirmação modernista paço imperial
Eugênio Sigaud - A Escultura do Comércio e a Rua, 1942

Vemos, por exemplo, um Eugênio Sigaud da década de 1940, sua melhor fase. Por uma perspectiva derivada do expressionismo e da vanguarda russa, a cidade surge como palco de transformações econômicas e sociais. Aos pés de Mercúrio, deus do comércio, velhas práticas humanas convivem com os símbolos da era industrial. Sigaud subtrai a natureza, mantem cores em tons baixos, expondo sua visão crítica dos novos tempos. Mas não abandona a esperança, aludida por pombas que cruzam, quase imperceptíveis, a cena.

Di Cavalcanti - Brasil em quatro fases coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Di Cavalcanti - Brasil em Quatro Fases, 1965

Seguindo em frente, os quatro grandes painéis de Di Cavalcanti sobre períodos da História nacional dão testemunho da manutenção de verve cultural e antropológica do artista. Aqui não estamos diante de questionamentos ou inquietações. O mais importante é a sobrevivência de Di à recusa em ingressar nas correntes geométricas e abstratas da década de 1950. As figuras, delineadas, são bem distintas das que um dia caracterizaram seu trabalho. Culminam em certo efeito decorativo, onde se notam maneirismos à la Matisse, Léger e da arte dos vitrais.

Isabel Pons - Poblet 1965 exposição afirmação modernista coleção banerj
Isabel Pons - Poblet, 1965

Na sala dedicada a obras gráficas, uma curiosa água tinta de Isabel Pons composta por blocos agregados evoca uma estrutura de grandes dimensões. Um confronto proveitoso pode ser feito com dois óleos de Henrique Cavalleiro, que demonstram assimilações Cézanneanas. Um deles, de uma paisagem com montanhas, está quase liberto do referencial temático, produto que é do flerte com uma linguagem de anseios mais puros e autônomos. Comparação mais sutil pode ser feita então com uma obra de Alvim Menge. Esse pintor pouco lembrado legou obras de interesse também iconográfico e está representado por uma paisagem de Copacabana que em muito corresponde às de Manoel Santiago, seja nas dimensões, seja na paleta ou pinceladas.

Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas 1926 coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas, 1926

Alvim Menge - Copacabana coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Alvim Menge - Copacabana, início Séc.XX

Mas nem só de século XX se constitui a coleção Banerj. Há, por exemplo, além de um variado conjunto de gravuras da época do Império, um luminoso óleo de Benno Treidler e uma intrigante composição de Estevão Silva com objetos de caça. Nessa, a fuga da obviedade na disposição dos elementos faz com que, mesmo tendo sido pintada em 1889, se irmane em espírito às experiências da abstração.

Benno Treidler - rio de janeiro coleção banerj
Benno Treidler - Entrada da Barra do Rio de Janeiro


Estevão Silva - Caça - pintores negros brasileiros coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Estevão Silva - Caça, 1889

A mostra segue com obras de Pancetti, Anita Malfatti, Burle Marx, Eliseu Visconti, Fayga Ostrower, Carybé e tantos nomes de vulto que, por si, encheriam vários artigos. Mas encerremos com um dos temas que subjazem à exposição: o critério de aquisição das obras pelo antigo banco.
Acervos como o do Banerj são, sem dúvida, fruto de preferências dos que os constituíram. José Paulo Moreira da Fonseca, artista, advogado da instituição e um dos responsáveis pela seleção das obras, era tido como pouco afeito às correntes Concreta, Neoconcreta e demais manifestações surgidas a partir da segunda metade dos anos 60. 
Isso explicaria a falta de representatividade dessas vertentes no acervo?
A resposta não é tão simples. A escolha de obras para uma instituição pública impõe a conciliação entre verbas, prazos, artistas e obras disponíveis. Cada instituição possui características próprias, sejam relativas à estrutura de gestão e funcionamento, sejam relacionadas aos espaços a serem ocupados e seus ocupantes. Cada instituição presta-se a uma finalidade específica e está implementada em uma concepção arquitetônica específica, o que resulta em uma identidade própria e em condições e razões próprias para a seleção das obras. Para esse cenário também concorrem vozes alheias ao mundo da arte, como simpatias e gosto de diretores, dos que os indicaram e de demais funcionários.
O acervo de um banco estatal não tem pretensões museológicas e também nada indica que, sem a privatização, as lacunas do conjunto não teriam sido sanadas. Para compensar as ausências, pode-se argumentar que alguns artistas presentes tiveram sua rara oportunidade de figurar em uma coleção pública e os não representados já figuravam no acervo de outras instituições.
No fim, essas considerações pouco importam. Se a coleção Banerj apresenta lacunas, por outro lado não peca pela escassez de obras nem por dúvidas quanto a sua qualidade.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Estado Bruto no MAM RJ

Os novos ares que circulam pelo MAM renderam mais uma exposição notável, dessa vez ao encontro de certa imaginação do público a respeito do acervo do museu. Não há visitante que nunca tenha se perguntado sobre o conteúdo da coleção, as obras guardadas, pouco expostas, e o porquê do oblívio.  Uma incursão pelo acervo de esculturas - melhor dizendo, obras tridimensionais - do MAM é oferecida pelos curadores da mostra Estado Bruto. Uma incursão nada comum, com o maior número dessas obras apresentado em toda a história do museu.

Estado Bruto deixa de lado o esquema tradicional de cronologias, releituras ou defesas de tal ou qual ponto de vista sobre determinado artista ou assunto. É claro que um caráter panorâmico permeia a proposta, mas de modo difuso, intercruzado, já que as obras não estão dispostas segundo uma sequência de criação. Elas estão agrupadas em diálogos, com suas distintas linguagens, abordagens, concordâncias, discordâncias, antíteses, analogias e, em especial, suas complementaridades. Cabe ao visitante colocar em ato essa interação potencial e também tirar suas próprias conclusões sobre a razão de terem sido, historicamente, mais ou menos apresentadas. Não é necessário que se chegue a um juízo único nem previamente desejado a partir dessas interações. O que importa, afinal, é a multiplicidade de pontos de vista e a celebração da arte e do acervo do museu.

Vivemos um tempo em que narrativas oficiais caíram em descrédito e instituições se renovam, buscam essa reaproximação do público afastado pelo velho exclusivismo do meio cultural. Hoje, se alguém sente-se excluído de um círculo, encontra outros círculos com um toque no celular, reúne-se a pessoas com ideias e desejos semelhantes - e dá uma banana aos deuses em fajutos pedestais. Um museu, em especial dedicado à arte moderna e contemporânea, precisa guiar-se por esses parâmetros sociais e valorativos vigentes na 3a década do século XXI. E nos últimos anos, a nova direção do MAM tem correspondido cada vez mais a esses preceitos.

O que vem ocorrendo no MAM demonstra que, ao contrário do que muitos creem, aproximar-se do público nada tem a ver com rebaixar o nível das atividades, muito menos abdicar da missão formativa e do status referencial do museu. Isso fica claro em Estado Bruto, onde, por mais flexíveis e propositivos que sejam os critérios da mostra, há um elaborado pensamento na seleção de obras, na separação e disposição por diferentes espaços e mesas e na correlação estabelecida para as peças. Nada é aleatório, nem voltado ao simples gozo visual. Em cada opção subjazem dimensões pedagógicas, fruitivas, educativas.

Vemos assim, lado a lado, criações como Integração, de Paiva Brasil, a cerâmica A Mãe, de Antonio Poteiro e os Asteroides, de Wilson Piran. Diferentes matérias estão presentes nessa interação: a madeira, o barro e o acrílico. À natureza de uns se contrapõe a artificialidade do outro. À transparência dos Asteroides se opõe a opacidade das demais. O rigor da ortogonia de raízes Concretistas é contraposto pela organicidade manual. Entre formas artificiais está uma essencialmente biológica, impregnada de valores, mas transfigurada pelo mundo interior do artista. À tese da indústria se amalgama a antítese inevitável da vida.

Obras de Paiva Brasil - Antonio Poteiro - Wilson Pirani

Em outra estante, a dimensão humana do amor e do erotismo marca presença com Ondine, de Henri Laurens, Reino Distante, de Márcia X, Baú de Palavras, de Rosana Ricalde e um bronze sem título, de Tunga. O desejo pela posse da matéria lida com a intangibilidade e uma fusão impossível, com pensamentos ocultos e a presença do desconhecido, do inclassificável. São obras de linguagens conflitantes, reunidas por uma complementaridade necessária.

Obras de Marcia X - Rosana Ricalde - Henri Laurens

É uma delícia viver esses dias em que obras como Mão de Guerreiro, de Bourdelle, Mademoiselle Pogany, de Brancusi e Icosaedro, de Felipe Barbosa são postas lado a lado. Em um diálogo assim, hierarquias e autoridades se desdizem, se diluem, como nas conversas dos habitantes da cidade maravilhosa que abriga esse precioso museu, renovado por preciosos ares.

Obras de Brancusi - Felipe Barbosa - Antoine Bourdelle

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Anthony Howe - O Constante Devir

 


A obra de Anthony Howe pertence à categoria ampla e sob muitos aspectos vaga denominada arte cinética. Ampla porque engloba criações que remontam aos Futuristas e Construtivistas russos, passando por Marcel Duchamp, Calder, Palatnik, Nicolas Schoffer e experiências da Op Art. E vaga por referir-se a obras tão díspares entre si, unidas pela simples característica de terem partes móveis.

Categorias e terminologias são convenções na arte; não devem ser tomadas ao pé da letra. Do contrário, restringem a investigação do artista e a relação do público com a obra, pelo estabelecimento de limites interpretativos e enfoques predeterminados. Convenções, portanto, têm muito de confusão e indistinção - e é precisamente disso que têm sido objeto as obras de Anthony Howe. Seus referenciais são buscados na ficção, em vez de na própria arte. Diz-se que são autômatos, quase seres vivos, convergência da biologia e avanços tecnológicos. O próprio artista contribui para fomentar essa aura ficcional, ao relacionar nominalmente as obras a seres da natureza e declarar a existência de uma dimensão futurística no que faz. 

Partindo de preceitos confusos, a fruição convencionada para as obras de Howe segue por descaminhos: A dita fusão da natureza com o artificial decorre da alusão formal a esqueletos, flores e artrópodes que, rotacionados pelo vento, suscitam a ideia de vida. O sugerido teor futurístico, por sua vez, evoca um porvir alimentado há quatro décadas pelo cinema, em que a humanidade, tendo perdido o lastro estético tradicional, criaria artefatos a partir de despojos da antiga civilização, com uma simbólica nova, de beleza peculiar, até mesmo bizarra.

Tudo isso pode parecer interessante como ficção, mas desvirtua uma produção rica e inventiva, deixando de lado seu real valor. Tão logo removidas desse cenário e consideradas à luz da própria arte, as obras de Howe conquistam uma posição de relevo na produção cinética, dialogando com suas matrizes no Futurismo, Construtivismo e Op Art. Se seus precedentes, como Schoffer e Palatnik requeriam mecanismos elétricos para o movimento controlado, as criações de Howe movem-se como cata-ventos, por forças imprevisíveis, da própria natureza. Se Schoffer e Palatnik criavam para interiores e lidavam com luz artificial, Howe produz para ambientes externos e explora a reflexão da luz solar, em consonância com o ideário contemporâneo de sustentabilidade. Muito mais do que aludir a um porvir fictício, o artista realiza, no presente, o futuro um dia idealizado: de uma arte em que convergem, física e simbolicamente, indústria e natureza.

Obras cinéticas de Nicolas Schoffer e Abraham Palatnik

A consideração dessa produção à luz de suas antigas congêneres também demonstra que, por cinéticas que sejam, consistem em armações tão pousadas sobre o solo quanto uma escultura tradicional. Elas existem como um sistema fixo, com a especificidade de que parte de seus componentes se projetam e se retraem, podendo seguir esse ciclo indefinidamente. Ao se moverem, esses componentes oferecem uma profusão de efeitos visuais derivados de suas relações não apenas entre si, mas também com as condições do ambiente e o espaço. Como uma parte dos componentes se projeta enquanto outra se retrai, a obra renova, continuamente, por sua própria natureza formal e relacional, suas possibilidades.

As criações de Howe seguem, portanto, um processo de metamorfose cíclica, em uma concepção ao mesmo tempo dinâmica e estática. Tal característica é explorada desde longa data na arte, por seus paralelos com o pensamento e a vida. Na música, por exemplo, encontra-se na polifonia da renascença franco-flamenga de Ockeghem e Dufay, cuja estrutura proporciona nem tanto uma experiência de desenvolvimento sequencial, de começo, meio e fim. Em vez disso, nessas obras prevalece uma transformação sonora pelos encontros das notas, em acordes ou intervalos, que se expandem e se propagam no espaço. Modernamente, esse recurso foi retomado por Giorgy Ligeti em obras como Atmosphères, Requiem e Lux Aeterna. Passando por vertentes minimalistas, chegou aos dias de hoje como base da chamada Drone Music. Na escultura tradicional, esse processo de projeção e retração aparece de modo contingente, mas notável, nas composições plásticas do período Helenístico e Barroco. Já na Arquitetura, pode ser encontrada nas fachadas de Borromini e, contemporaneamente, de modo pleno nas criações de Frank Gehry, cujas extrusões constituem verdadeiras irrupções da obra no espaço.

As obras de Howe, a exemplo das ideias pré-Socráticas, seguem uma alternância de contrários. Como o rio de Crátilo, são aquilo em que se tornam. São um constante devir. Não existem cristalizadas no mundo, mas em relação a ele, influenciando-o pela sua presença e sendo por ele influenciadas, realizando, nesse processo, sua natureza mais intrínseca.

A própria trajetória de Howe segue esse padrão de alternâncias. Tendo começado a carreira como pintor, encontrou os conhecidos obstáculos do meio e foi obrigado a mudar de profissão. Passou a trabalhar em uma montadora de móveis de escritório, onde entrou em contato com as potências expressivas do metal. Dessa experiência, ressurgiu como artista, sob a égide de sua atual produção cinética.

Essa é a essência de Anthony Howe, revelada em sua vida e em sua arte. Suas obras, consideradas desde o ponto de vista histórico e de suas correlações filosóficas e humanas, abrem caminhos para novas investigações e derivações cinéticas, tanto suas quanto de demais artistas - o que não ocorre quando julgadas por meras analogias biológicas e futurísticas estabelecidas pela convenção.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Pietrina Checcacci em Retrospectiva


Pensamentos, 1965  e  Tempo da Terra, 1978

Cerca de cem obras, entre telas, esculturas, selos e medalhas, foram escolhidas para a mostra 60 Anos de Arte, no Centro Cultural Correios-RJ, dedicada a Pietrina Checcacci. Nascida italiana, essa artista de temperamento afetuoso radicou-se ainda jovem no Brasil, onde se formou, na década de 1960, pela Escola Nacional de Belas Artes. Desde então, angariou prêmios e nunca parou de expor. Nos últimos anos, porém, seu nome tornou-se mais frequente nos leilões e antiquários. Uma retrospectiva contribui para divulgá-la como artista atuante, e reconduzi-la ao devido lugar.

Para o olhar atento, não passam despercebidas certas constâncias nessa produção. Marcadas pela experimentação técnica e temática, as telas iniciais de Pietrina são de um figurativismo carregado de inquietações. Mas como que transubstanciando influências e preceitos, a artista logo encontrou uma linguagem mais leve, fluida, de tons claros, que revelava mais de si e cuja exploração foi levada adiante. Essa mudança também pavimentou o caminho para sua escultura, com o aporte de preceitos materiais, físicos, mais ousados. Se parece haver um antagonismo entre as telas iniciais e as posteriores, fica claro, porém, que sempre foram dotadas de uma energia latente, reveladora de um estado de espírito que ordena as formas e estrutura as composições.

Decifra-me ou te Devoro, 1983  e  Verde e Rosa, 2020

Essa produção também é marcada por um acentuado espírito do tempo: na técnica, na paleta, na composição e, a partir da década de 1970, na visão holística que analoga o corpo humano à natureza e a forças universais. Há quem renegue abordagens desse tipo, pelo risco de excesso de subjetivismo e de uma sujeição a considerações externas à arte. Há quem resista ao fato de uma escultura poder servir como suporte de mesas, serre-livres ou atender outras utilidades, contrariando as expectativas mais estritas de separação entre arte e vida prática.

Mas é a própria artista quem explica, sem rodeios, o que há em sua obra. Em uma entrevista da década de 1980, esclarece que a opção por retratar partes do corpo se deve ao potencial plástico de mãos, pernas e braços. E que o utilitarismo das esculturas visa trazer criatividade ao cotidiano, fazendo com que arte e vida se tornem indissociáveis.

De fato, mais do que a simples cópia da realidade visível, sua obra é eminentemente plástica. Mesmo explorando um repertório específico, suas telas estabelecem diferentes evocações e analogias a partir de configurações formais. Não estabelecem nem dependem de textos ou narrativas. São, muitas vezes, paisagens derivadas de corpos. As esculturas, por sua vez, não retratam indivíduos específicos: são lisas, reluzem em cores e brilho fortes, perfeitas em sua artificialidade.

Suas telas e obras tridimensionais se complementam, tanto em preceitos quanto pelo forte espírito da Pop Art. Se na pintura Pietrina busca algo transcendente, com ecos surrealistas, sua escultura é insinuante, explora as potências da forma e exercem apelo tátil. Vale sublinhar que essas criações tridimensionais não são esculturas no sentido estrito do termo, de desbastar e polir pedras, mas no amplo, de modelagens, que lança mão de técnicas atuais como fibras de vidro e pintura industrial.

Selene, 1985

A década de 2010 assistiu a retomada de linguagens e estéticas de um passado não muito distante. Em 2021, jovens escutam Rock, vestem New Wave, cultuam antigos videogames e objetos vintage. Assistimos a revalorização do historicismo na arquitetura, o retorno dos discos de vinil, das plantas à decoração de interiores. A tecnologia e as mídias sociais possibilitaram essa redescoberta do que estava esquecido, sonegado pelos donos de narrativas oficiais. Pessoas com interesses em comum se aproximam, artistas e público se encontram em postagens na internet. Essa livre busca e incorporação de referenciais levou à emancipação individual em todos os níveis e ao consequente colapso de projetos e considerações exclusivistas da Arte. A consciência de que verdades não passavam de versões não poderia ter outro desfecho: pôs em xeque até mesmo a História dessa disciplina tal qual era estudada nos últimos séculos.

Uma visão da arte brasileira só será válida se abranger o múltiplo, as variadas correntes e vertentes em voga e que se foram, e não cânones nem recortes, com preceitos e finalidades preestabelecidos. Espaços como a Caixa Cultural, BNDES e os Centros Culturais da Justiça Federal e dos Correios têm prestado uma valiosa contribuição à divulgação de nossa produção cultural. No caso desse último, são dignas de nota as mostras dedicadas a Roberto Moriconi, Flora Morgan-Snell e artistas de linhagens mais antigas, como Edgard Cognat.

A arte das décadas de 1960 e 1970 nos parece mais próxima hoje do que parecia 20 ou 30 anos atrás. E Pietrina Checcacci tem a oferecer algo livre, telúrico, etéreo, e também sensual, ousado, a esse período de ecletismo que vivemos, ainda inclassificável.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Novos Ares no MAM-RJ

A nova iluminação do térreo do MAM

2021 começou pedindo uma visita para conferir a evolução das mudanças no MAM, que desde o ano passado conta com nova diretoria e uma importante restituição à concepção original do edifício. O salão do último andar voltou a ter vista para a baía de Guanabara, obstruída durante anos por painéis e por uma infame película sobre os vidros. A inovadora política de ingressos, com valor sugerido, agora proporciona a muitos não apenas visitar a instituição pela primeira ou por mais vezes, como também desfrutar essa antiga experiência de integração entre interior e exterior, oferecida pela arquitetura de Affonso Eduardo Reidy.

É um prazer reencontrar obras icônicas do acervo, como o óleo sem título de Bruno Munari (1950), a Construção em Latão, de Max Bill (1937), e a tapeçaria Odisseia, de Le Corbusier (1948). Escolhidas para a mostra Realce pelos novos curadores, são criações que se coadunam historica e conceitualmente ao edifício. É igualmente proveitoso o contato com um conjunto representativo de Metaesquemas, na mostra em parceria com o MASP dedicada a Helio Oiticica, bem como circundar por generoso espaço os Núcleos, obras pendentes da fase seguinte do artista.

Vista da mostra de Hélio Oiticica

Dedicada aos Irmãos Campana, a panorâmica 35 Revoluções já nasceu histórica, tanto pelas circunstâncias enfrentadas na pandemia quanto, principalmente, pelo enfoque de uma brasilidade repleta de matérias, propriedades, cores e texturas - brasilidade sobretudo contemporânea, universalista. A montagem é exemplar. Quanto à concepção das demais mostras, alguns fatores não propiciam uma experiência equivalente. Na dedicada a Hélio Oiticica, a disposição dos Parangolés próximo à parede do salão principal estabelece um contraste de escala entre as peças e o ambiente, que as diminui. É verdade que o público é remetido assim ao caráter informal desses trajes-propostas, concebidos para o ar livre. Mas as criações ficariam melhor ao centro do salão, ou do lado oposto. No primeiro caso, o campo visual amplo ofereceria uma analogia com o céu aberto; no segundo, a altura mais baixa do mezanino instauraria uma relação pessoal direta com os trabalhos. Na mostra Cosmococa, voltada para a parceria entre Oiticica e Neville d'Almeida, grandes superfícies também são deixadas em branco, resultando em confusão para o público quanto ao trajeto e quantidade de material exposto.

É preciso tirar partido das potências arquitetônicas do MAM, sempre que possível. O fato é que estamos diante de desafios enfrentados a cada passo, dentro e fora da instituição, em tempos de exigências de distanciamento pessoal pelo surto de Coronavírus. Percalços de lado, a experiência de um Manabu Mabe (1968) e de um Cícero Dias (1951) banhados de luz natural no último andar dá testemunho da convergência própria e necessária àquelas fases da criação nacional, fazendo-nos pensar no que mais virá, quando as propostas de renovação puderem ser colocadas em prática sem as contingências atuais, alheias ao museu.

Mudanças costumam ter lenta acolhida, mas a direção de Fabio Szwarcwald e a curadoria de Pablo Lafuente e Keyna Eleison foram desde o início recebidas com simpatia. Saímos do MAM cheios de confiança e otimismo. E é disso que precisamos nesses momentos tão difíceis.