terça-feira, 21 de março de 2017

Retrato da Princesa Olga Orlova, por Valentin Serov

Valentin Serov (1865-1911)
Retrato da Princesa Olga Orlova, 1911
Têmpera sobre tela, 235 x 156 cm

Dentre as lacunas no cultivo da arte no Brasil, a que passa mais despercebida talvez seja a da produção russa. Para a nossa história da arte, a Rússia adquire importância apenas no alvorecer das vanguardas do início do século XX. Estuda-se o Construtivismo; estuda-se o Suprematismo; estuda-se o desenvolvimento da abstração a partir de Kandinsky, etc. Essas correntes, porém, surgem como que espontaneamente e desaparecem sob igual névoa de mistério, passando a impressão de serem o pouco a ser considerado daquela produção. Kandinsky, por exemplo, tem não apenas sua origem Simbolista deixada de lado, mas o viés espiritual de sua criação também apartado do misticismo dos povos interioranos asiáticos, dos quais ele próprio sentia-se legatário. Sua obra é interpretada basicamente pelo viés formal, pela renúncia à representação do universo visível, pelo aspecto estrutural do que punha na tela. Acusam-lhe a permanência do caráter de cena na composição: num espaço flutuam elementos que mantêm resquícios dos referenciais naturais - e a ressalva é feita como se devêssemos esperar o completo divórcio entre a arte e a psicologia e metafísica; como se, nessa trajetória, o pioneiro tivesse enveredado por sendas das quais o Construtivismo, com sua rigidez materialista, havia acertadamente mantido distância. Para nós, a arte russa (ou melhor, um conjunto de artistas russos, não necessariamente produzindo em solo russo) aparece nesse contexto de problemáticas, e é deixada de lado no momento da implementação das políticas culturais soviéticas, inicialmente com Lunacharsky e, em seguida, com a abolição das vanguardas para a institucionalização do chamado Realismo Socialista.

A consideração por nós de apenas um episódio dessa produção, por atender ao entendimento de sua influência sobre a arte ocidental, relega ao ostracismo uma plêiade de artistas que deixaram obras-primas em conteúdo humano e significado histórico. Um desses nomes é Valentin Serov, retratista da melhor estirpe, dotado de sensibilidade e percepção psicológica apuradas. Filho de músicos, Serov trouxe para a pintura elementos da arte musical que merecem ser considerados para o entendimento do que produziu.

A arte sonora, por possibilitar a concomitância de diferentes ideias e sentimentos, é capaz de instaurar estados de espírito nos indivíduos e submetê-los à percepção da realidade sob determinado prisma. Através da música, o ouvinte é conduzido a um universo onde impera uma sintonia específica com os demais âmbitos da existência - sintonia alimentada por comentários, divergências, expectativas nas diferentes vozes, frases e melodias; sintonia, enfim, dirigida pelo pensamento do autor. Para um pintor, seja retratista, paisagista ou praticante de qualquer outro gênero, o contato com essas experiências é imprescindível, já que põe de lado o desejo humano, inato, de redução da imagem criada a uma mensagem simples, direta e, portanto, pobre de conteúdo.

A exemplo da essência da linguagem musical, Serov procedia uma depuração do que representavam os indivíduos. Observava a gesticulação, expressões, o olhar, postura, e articulava esses diferentes elementos na tela como tradução de um conjunto relativo à personalidade e atividade do retratado. Ao que tudo indica, a recepção por parte dos que encomendavam as obras era de estima, já que lhe garantiu trabalho até o fim da vida. São dele os célebres retratos de Rimsky-Korsakov e Maxim Górky, cultuados entre os que reconhecem nessas obras uma relação verdadeira entre a imagem desses indivíduos e a essência de suas atividades. O de Rimsky-Korsakov nos mostra alguém mergulhado num mundo interior e fantástico; o de Górky, um homem propenso a idealizações, altivo e determinado. Podemos inferir as mesmas considerações das demais telas, de indivíduos sem realizações notáveis ou caídos no esquecimento, e imaginar como seriam seu caráter e temperamento.


No último ano de vida, Serov fez do retrato da princesa Olga Orlova uma obra-prima. Afastando-se da fatura anterior, influenciada pelo Impressionismo, pouco a pouco havia adotado uma pintura de pigmentação rala, tons esmaecidos, composição limpa e elementos praticamente planos, mas mantendo cenários tradicionais. A princesa foi retratada numa postura arrogante, sobrancelhas erguidas em sinal de desprezo pelo observador. A ausência de sorriso é característica desses temperamentos, pela acintosa negação de empatia. Indivíduos assim reforçam a inércia facial, adotam expressão postiça a fim de evitar um acidente de cumplicidade. Igual evasão é feita aqui pelo olhar da personagem, que nos observa, disfarçadamente, desde cima, e também pela recusa de atenção, já que o corpo, mantido em perfil, indica que não somos dignos de sua visão. O torso exposto acusa uma vaidade já incompatível com os anos. Encerrada sobre o corpo, a mão esquerda denota um gesto afetado de proteção, denunciando em seguida a fragilidade da personagem que, ao agarrar-se às pérolas, o faz como quem recorre a um símbolo. Os sustentáculos de toda essa empáfia são, em última instância, a riqueza e os privilégios, nada mais.

É importante ressaltar a data da tela, 1911. O período foi o interregno entre os eventos de 1905 que resultaram no fuzilamento de manifestantes pela guarda imperial e a consolidação da Revolução, em 1917. Em solidariedade aos assassinados, Serov pedira afastamento do cargo de professor da Academia de Artes de São Petersburgo e, ainda que não abraçasse a vanguarda e desse continuidade à tradição dos retratos, convivia com a intelectualidade e mantinha posicionamento político avançado frente ao cruel sistema imperial. Sabia, portanto, que aquele mundo, no qual vivia seus últimos dias, estava igualmente prestes a acabar.

A inserção do retrato de Olga Orlova na escala temporal oferece mais do que a análise psicológica que caracteriza a produção do pintor. Aqui, a personagem é objeto de um pensamento sobre sua condição ante um processo político irrevogável. Sua posição e riqueza são a fragilidade que a empáfia já não esconde. A tela adquire, assim, dimensões documentais e históricas para além do protagonismo até então conferido aos indivíduos retratados.

Serov morreu no mesmo ano de conclusão da obra, 1911. Tinha 46 anos. Durante o período soviético, suas telas que recebiam interesse oficial eram basicamente cenas de gênero: retratos diluídos em situações representativas da vida e do cotidiano. Já numa fase posterior, de arrefecimento do Realismo Socialista, sua produção pôde então ser apreciada mais amplamente, tendo sido objeto de publicações de divulgação internacional. Em nossos dias, a débâcle da homogeneização teórica e a livre circulação de informação propiciaram o retorno da visão culturalista e antropocêntrica da arte, em detrimento das leituras que privilegiavam um desenvolvimento único e linear para essa expressão essencialmente humana. Se há algo de bom a ser aproveitado na contemporaneidade, é essa valoração polifônica da cultura, que comporta inúmeras vozes, caminhos, acidentes e dissonâncias, muito mais do que a monodia exaustiva e repleta de lacunas de outrora.

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