domingo, 26 de março de 2017

Crise e redenção em Patricia Piccinini


A obra de Patricia Piccinini oferece a oportunidade de se repassar um conjunto de preceitos que permeiam a criação contemporânea: o realismo, a verdade, o valor e os vínculos ambíguos entre ciência e necessidades psicológicas humanas. 

Patricia cria seres tão empáticos a ponto de duvidarmos que não sejam reais; dota-os de gestos e caráter; explora o universo da fêmea - da fêmea, sim, mais do que feminino, como frisou na palestra de abertura de sua mostra no Rio de Janeiro, em 2016, e explora os instintos protetores daquele que observa as obras, através de cenas de adoção, afeto e cumplicidade. 

As crianças de Patricia estão absortas e enchem o observador de ternura, mas logo percebemos que muitas não são apenas humanas, e sim híbridos com outras espécies, manipulações genéticas que fogem, propositadamente, aos padrões de beleza. É preciso atenção aqui para não confundir os diferentes graus dessa abordagem. Ao contrário do que reza o decálogo relativista, nada nem ninguém é necessariamente belo pelo que tem de singular. O afeto que sentimos por essas criaturas decorre de algo mais, de um valor, que sobrepomos aos impulsos que nos conduzem em direção contrária. Os valores associados à infância serão sempre belos, ainda que a aparência de uma criança nos desagrade. Uma criança será sempre criança, queiram padrões estéticos ou não, queira a biotecnologia ou não.

Patricia argumenta que não se preocupa com a moral, com o certo e o errado, e sim com a ética, que, para ela, consiste no universo dos valores superiores. Dessa forma, deixa para trás questionamentos sobre a concordância ou não com a manipulação genética e a toma por fato consumado, para poder abordar livremente o enredo sentimental desses indivíduos. Ainda assim, diante de suas obras não há como deixar de interrogar o porquê de essas criaturas serem sempre dóceis. Predomina aqui uma premissa oculta, a velha ilusão do futuro virtuoso, a velha ilusão que levou a humanidade a crer que junto ao progresso de balões e aeronaves não viriam os bombardeios e armas de destruição em massa; predomina a ilusão que até bem pouco tempo atrás nos cegava para o fato de que às trocas de informações digitais se seguiriam, inevitavelmente, o monitoramento e vigilância de nossas atividades; predomina a ilusão de que, varridas para baixo do tapete, as consequências negativas de nossa intervenção no mundo darão espaço a virtudes que preencherão a vida de harmonia e de paradigmas de beleza como jamais imaginados.

A verdade, sabemos, é bem distinta dos silogismos virtuosos. Mas a proposta de Patricia sobressai entre tantas que vêem no porvir apenas incertezas e terror. Seu trabalho é a afirmação na crença da bondade e seu mérito é trazer novas abordagens para o orgânico, apresentando-o como força vital da arte. Indivíduos não são retratados por ela a sós, vagando num mundo hostil, mas em relação com outros, uma relação de pureza que transpõe as barreiras da diferença física e indiferença emocional. Suas bases criativas estão no surrealismo, e a verdade desse movimento é a dos sonhos, dos delírios e pulsões surgidas nos recônditos da natureza.

A dúvida quanto ao caráter de arte dessa produção persegue o mais sincero dos espíritos. Não está claro o que distingue esses seres dos personagens de um filme. Poderia-se tratar igualmente de brinquedos, não fosse a contextualização apresentada pela artista, cujos argumentos oscilam entre problemas sociais, éticos e instintos biológico-sexuais. A simultaneidade de considerações atenua fronteiras por si mesmas vagas e cativa um observador já seduzido pelo realismo dos personagens com o vislumbre de um futuro no qual vigorarão relações intersubjetivas mais honestas, espontâneas, e, por isso mesmo, melhores que as atuais.

A dimensão histórica dessa produção é instável. A arte sempre lidou com a temática de época e, muito em breve, a engenharia genética será corriqueira em nossas vidas. Se por um lado o pioneirismo é sempre bem-vindo, por outro essas obras correm o risco de logo se tornarem objetos de uma ficção científica obsoleta. Quem olha hoje sua série 'Cyclepups', por exemplo, já identifica ali idiossincrasias da década passada.

A arte oferece um testemunho de seu tempo e, portanto, as obras de Patricia Piccinini são paradigmas da substância cultural e psicológica não do futuro, que nelas é abordado como tema, e sim de nossa própria época. São testemunhos da atual descrença na humanidade, da precariedade das relações e da confusão de concepções valorativas e seus usos.

Cyclepups


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