quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A Nuvem de Peter de Cupere


Raramente nos damos conta de que por trás de uma obra pode não estar nenhuma das idéias suscitadas por sua mera visualização. Raramente nos damos conta de que a consumação do propósito do artista pode acabar anulada pelo hábito de nos dirigirmos, de maneira automática, ao título e descrição antes da apreciação de seu trabalho. Às vezes a curadoria da exposição considera esses fatores e dispõe as informações num lugar reservado, por onde o visitante só passará após ter vivenciado a obra. Às vezes é o acaso que conspira a nosso favor. Nos esquecemos de cumprir o ritual e, sem a interferência de descrições ou títulos, acabamos tendo a experiência almejada pelo artista. Boas recordações, quando não planejadas, dependem sempre dessas peças que o destino nos prega.

Talvez os hábitos sejam um entrave à arte. Talvez, pelo contrário, existam para mostrar que surpresas são importantes, que não devem ser vulgarizadas, e que se partíssemos do princípio de que algo nunca é o que parece ser, estaríamos no reino do caos. Não poderíamos alimentar expectativas, nem mesmo a de vê-las contrariadas. O mundo, ainda bem, jamais será assim, porque se algo se manifesta sob determinada aparência, é unicamente porque sua essência assim o permite. Logo, o que consideramos surpresa consiste na demonstração de um equívoco em que incorremos: o de condicionar a uma única essência uma aparência que pode ser a mesma para várias essências diferentes. Coisas diferentes nos aparecem sob a mesma forma a todo instante. Conclusões óbvias deixam de aparecer em nossos condicionamentos. É assim a natureza. E sabe-se lá o porquê.

Diante disso, o importante é jamais esquecer: para que não tenham o impacto diminuído, algumas obras só devem ter o título conhecido após vivenciadas. Do contrário, serão apenas confirmações daquilo com que acabamos de tomar contato num texto. Já chegaremos prevenidos, com o espírito programado para determinada situação, e as possíveis surpresas serão anuladas. Portanto, se a obra aparenta guardar um segredo, o melhor é deixar para conhecer-lhe o título e a descrição após a fruição. Se, depois, as informações acrescentarem algo de novo, não percebido durante a fruição, basta voltar para fruí-la novamente.

Pairando no ar, a nuvem do belga Peter de Cupere tem o interior acessado por uma escada. Uma luminária acesa demonstra que nenhuma ameaça espreita o fruidor. Nenhuma ocultação está em jogo. Nenhum susto lhe será infligido.

À maior aproximação, comprova-se que ali não há nada além de uma nuvem. Seu interior mostra-se vazio e a beleza sedutora da textura persuade à penetração para que a obra seja finalmente desvendada.

A subida tem início mas, dois degraus acima, as mãos, antes desejosas pela participação na experiência, renunciam ao toque, obrigadas a concorrer para o equilíbrio corporal. O tato, sabe-se agora, não tomará parte no evento. A visão, também ela, começa a se mostrar pouco útil, pela perda da abrangência da totalidade da obra. A atenção volta-se apenas para o instante da entrada, e nada mais.

Já no interior da nuvem, se consumam a fruição e o momento máximo da obra. Visto de fora, o participante impõe-se como elemento outrora ausente da composição, enquanto que, dentro, descobre que não vivencia nada do que era esperado. O interior recende a fumaça e a experiência, até então prazerosa, transmuta-se num evento profundamente desagradável.

Essa é a obra. Quanto mais ascendemos, mais descobrimos os desdobramentos ignorados de nossos atos. Mais renunciamos a desejos. A ilusão, a sedução, o fascínio pela beleza, são anulados quando estamos no cerne da verdade.

Você pode questionar o uso político que se faz do ambientalismo. Pode discordar do alarmismo e da economia estabelecida em torno de diagnósticos apocalípticos. Mas a nuvem de Peter de Cupere não aponta culpados nem oferece soluções. Refere-se, apenas, a um fato que pode, inclusive, ser transposto em analogias para outros âmbitos da vida. O julgamento fica por conta de cada um.

Nada mais contemporâneo. Nada mais tradicional. A arte, em seu sentido moral e pedagógico, é aqui atualizada na temática, na linguagem e nos meios de recepção; dirige-se ao indivíduo e o torna testemunha de uma experiência única.

Peter de Cupere nasceu em 1970 e realizou as primeiras exposições de arte olfativa na década de 90.

Smoke Cloud foi idealizada em 2013 e é composta por resina epóxi, madeira, metal, algodão sintético e aroma de fumaça. Seu diâmetro aproximado é de 2,60 metros.


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