sexta-feira, 8 de junho de 2018

Queermuseu: censura e oportunidade

Bia Leite
Travesti da Lambada e Deusa das Águas, 2013

Passado quase um ano, a censura à exposição Queermuseu ainda está em cartaz. Mesmo sem ter embasado nenhuma crítica às obras, a difamação surtiu efeito e acusações se consolidaram como análises aprofundadas. Artistas são agora inimigos do povo, comprometidos com a destruição da família e dos valores ocidentais. Como quaisquer outros criminosos, devem ser denunciados e condenados.

Ninguém se interessa pela verdadeira história. Ninguém se interessa pela prova de que as acusações foram baseadas em fake news, nem pelo fato de o curador ter saído do Congresso com os louros da vitória, após uma insólita inquirição parlamentar. A imagem que ficou foi a do triunfo do povo contra a elite esquerdista, mesmo após comprovado que esse povo tinha sido mais uma vez ludibriado.

Os familiarizados com o assunto perceberam desde o início que a campanha contra a Queermuseu não passava de uma exploração sórdida. As acusações nada tinham a ver com as obras expostas e o sensacionalismo era insuflado. Pessoas tomavam qualquer denúncia como verdadeira, replicavam montagens e vídeos na internet sem se dar conta de que, com isso, capitalizavam aproveitadores pela enxurrada de anúncios que visualizavam. Mas não havia o que fazer. A maioria dos brasileiros acredita que uma tela ou escultura vale conforme a imitação, mais ou menos fiel, de objetos. Acredita que artistas lidam com o proselitismo do certo-ou-errado, que a arte deve ser mero veículo de doutrinas morais e ilustração da religião. A maioria não visita exposições, não se dá ao trabalho de ler, de se informar, ainda que gratuitamente, sobre o assunto. A arte no Brasil é extremamente suscetível a aproveitadores, dada essa confusão no imaginário cultural.

Em suas memórias, Somerset Maugham escreveu que o que importa numa obra é o que pensamos a seu respeito. A observação é válida especialmente em sentido negativo. Dedique uma vida inteira à arte e torne-se odiado por ameaçar o que pensa quem nunca estudou o assunto. Diante de uma obra, pessoas projetam suas próprias subjetividades, fantasiam sobre intenções que não percebem nem compreendem. Jogam fora o pensamento do autor e o substituem pelo delas. Se têm pensamentos rudimentares ou enviesados, rebaixam a obra, tomam-na pelo que ela não é. Esse é o principal desafio com que educadores e artistas, principalmente os brasileiros, têm de lidar.

O sucesso das acusações à Queermuseu foi tal a ponto de cidadãos insuspeitos se sentirem livres para revelar suas verdadeiras identidades. Em postagens da internet, velhinhas atacavam artistas com palavrões, supostos rebeldes apelavam a Tomás de Aquino, analistas culturais davam pareceres errados e, depois, apagavam as mensagens. Palpites eram tomados por palavra final sobre o assunto, mesmo que emitidos pelos que estavam entre os cerca de noventa porcento da população que jamais botou os pés em um museu. Tudo isso, aliado à ausência de informações oficiais sobre as obras, fez com que a difamação da mostra instituísse um bestiário nacional de fazer inveja ao dos monges de Aberdeen. 

Mas por mais que enganem desavisados, aproveitadores jamais impedirão que artistas produzam o que têm de produzir. A manipulação pode interferir na política de instituições. Pode culminar em corte de verbas, campanhas de difamação, ameaças à integridade de obras. Mas galerias e demais espaços continuarão a existir, compradores continuarão a aumentar suas coleções e publicações continuarão a circular entre o público especializado. A História ensina que perseguição e censura apenas valorizam a arte. E que, por mais que a demagogia avance, a inteligência prevalece ante os que dela preferem se privar.

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ATUALIZAÇÃO: Após uma campanha de financiamento coletivo, mais de 1600 doadores possibilitaram a remontagem da mostra Queermuseu no Parque Lage, Rio do Janeiro. Entre os meses de Agosto e Setembro de 2018, milhares de visitantes puderam, enfim, conhecer as obras que, no ano anterior, haviam sido removidas dos espaços de Santander Cultural, em Porto Alegre. Pequenos protestos voltaram a ocorrer nas proximidades da mostra, sem que obtivessem qualquer repercussão.

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