terça-feira, 5 de setembro de 2017

A Verdade sobre a Arte Moderna


L'ignorance toujours est prête à s'admirer 
Faites-vous des amis prompts à vous censurer
Boileau, Art Poétique
Foi com essa única referência, 'o rapaz do mapa-múndi', que ouvi a indicação de um vídeo capaz de mudar a visão de qualquer um sobre arte moderna. Os argumentos seriam demolidores, lavariam a alma da sociedade, provariam que toda a produção moderna não passa de um embuste e que os que discordam não passam de ignorantes e mentirosos. Procurei e descobri que o vídeo, chamado A Verdade sobre a Arte Moderna, já havia circulado pela minha linha do tempo. O rapaz do mapa-múndi chamava-se Paul Joseph Watson e era famoso por atacar o atual estado de coisas.

A formação de P.J.Watson pouco importa. Pelo que dizem, trabalhava com limpeza antes de decidir gravar comentários que vão da política externa à economia, da crítica cultural à condução de ações na Suprema Corte americana. Quem tenta desmerecê-lo pela origem humilde acusa de preconceitos quem tenta desmerecer desafetos pelo mesmo motivo. A hipocrisia é sempre alheia. No século XXI cada um tem o direito de falar o que bem entende e de dar atenção ao que julga merecedor. Watson arrebanhou milhões de seguidores. Não merece o desprezo ou ser tratado como qualquer um.

As opiniões de Watson sobre arte são, porém, catastróficas. Arte Dadaista, Arte Conceitual, Performance, Artes Moderna e Contemporânea são jogadas num mesmo saco, rebaixadas a clichês empobrecidos e mal-formulados. De cara é cometido o erro grosseiro de se chamar a arte moderna de conceitual, como se a segunda não fosse derivada da primeira. A ignorância sempre está pronta a se admirar...

Watson afirma que há bons artistas modernos, mas cita apenas Ron Mueck, que não é moderno, mas contemporâneo. Compara as telas de Jackson Pollock a golfadas de vômito, tentando mascarar com ofensas a própria incapacidade de diferenciar uma coisa da outra. Querendo-se ou não, Pollock é o maior pintor norte-americano. Bastaria a Watson abrir uma História da Arte para descobrir por que. Mas ele não se deu ao trabalho. A argumentação oferecida é falaciosa. Um avental sujo é apresentado a estudantes como se fossem um Pollock. A confusão dos jovens é usada então para comprovar que Pollock vale tanto quanto o avental. O detalhe de que jovens estudantes simplesmente não têm conhecimento para distinguir uma coisa da outra é escamoteado. Ofereça a garotos a paisagem de uma lata de biscoitos. Diga que é um Vermeer. O resultado será o mesmo. Se isso não é má-fé, não sei o que pode ser.

Os delírios continuam com a afirmação de que Matisse é uma porcaria, cultuado por elitistas unicamente pela justificativa bisonha de que a arte moderna precisava se afastar do realismo devido à invenção da fotografia. É preciso ignorar demais o assunto para sustentar o reducionismo. O que de fato ocorreu a partir do Impressionismo foi a busca da essência da linguagem da pintura, que desde o Renascimento havia se consolidado como a simulação numa superfície bidimensional de efeitos óticos da tridimensionalidade. Simulação, vale ressaltar, recheada de camadas e camadas de preceitos culturais que variavam de época para época, de escola para escola, de pintor para pintor, de fase para fase de cada pintor, e daí por diante. A fotografia, sem dúvida, contribuiu para o afastamento da pintura do realismo, mas nenhum artista de valor assentaria a produção nesse preceito tão frágil. Isso porque a arte nunca foi a mera representação da realidade visível. Antes da invenção da fotografia, cidadãos europeus jamais haviam topado nas ruas com ninfas, batalhas da Antiguidade, crucificações e anjos tocando harpa. Nenhum artista moderno importante ignorava - ignorava, no passado, pois há mais de meio século não vivemos a modernidade na arte, caro Watson - nenhum artista moderno importante ignorava o valor da arte anterior à que produzia. Se os modernos insurgiam-se contra a poeira e ferrugem do passado, era porque se deparavam com experiências no mundo das quais as linguagens tradicionais já não davam conta. Il faut épater la bourgeoisie, zombavam os Decadentes do século XIX, diante de um público aterrorizado. E Watson, por desconhecer o assunto, estremece 130 anos depois.

Em meio à enxurrada de incongruências, o escultor Hiper-Realista Ron Mueck é citado como um perseguido pelo establishment, quando, na verdade, trata-se de um dos artistas mais conhecidos, divulgados e apreciados da contemporaneidade. Mas apreciado, novamente, por motivos que escapam ao histrionismo do youtuber. A produção de Mueck está imbuída de crítica social, ironias e proselitismos que vão muito além da simples imitação de texturas e volumes corporais percebida pela miopia Watsoniana. A estupidez humana, a decrepitude, a negação dos parâmetros de beleza, a opressão feminina, a violência contra minorias raciais, o artificialismo e vacuidade da existência contemporânea - toda essa carga politicamente correta em Mueck seria odiada pelo bastião do apuro estético, caso soubesse do assunto que trata.

Watson nem imagina, mas o Hiper-Realismo, incensado no vídeo como triunfo da representação do mundo visível, pode, ironicamente, consistir também na declarada anulação da mão e mente do artista, que se coloca na obra apenas na escolha do ponto de observação do que está representado. Telas hiper-realistas são tão fiéis à realidade observável a ponto de se tornarem absolutamente artificiais pelo emprego de focos simultâneos, superfícies imaculadamente cristalinas e congelamento de uma infindade de detalhes - ou seja, uma experiência impossível ao olho humano diante da cena real. Watson enxerga valores errados nas obras pelo simples fato de não fazer a mínima ideia do que nelas está em jogo. É constrangedor. 

A reação de qualquer pessoa informada sobre o tema atinge o desprezo quando o candidato a crítico proclama que "a arte moderna é literalmente uma bobagem" e mostra como exemplo instalações que, além de não serem modernas, mas contemporâneas, traduzem uma parcela ínfima da produção atual. Se arte moderna é bobagem, seriam bobagens André Derain e Edward Hopper? Tamara de Lempicka e Salvador Dalí? Não é possível saber, porque o que a sumidade histriônica toma por arte moderna significa tudo aquilo que não seja a representação de uma cena sobre uma tela. As demais condicionantes ficam em aberto. Mas não por muito tempo, é claro, já que alguma baliza tem de ser oferecida para tanto rigor de julgamento.

A confusão avança, agora eivada de pretensões normativas. A "necessidade de se manter um parâmetro de qualidade e talento para se perceber o valor de alguma coisa", propalada a certa altura como aferição da qualidade da arte, é precisamente... a mesma que deveria ser aplicada a quem produz vídeos sobre um assunto. Não que grande parte do que é atacado na explanação seja valioso como arte. Não é. A fotografia de Andres Serrano, de um crucifixo mergulhado em líquido apresentado como sendo urina, é uma vigarice feita para chocar, apenas isso. Retire-se o fato de o líquido ser urina e a fotografia torna-se belíssima e evocativa. Mas Serrano acrescenta o detalhe para se fazer de questionador da aura de verdade com que imagens e descrições são recebidas, mascarando cinicamente a ofensa ao símbolo religioso com indagações que vão desde a verdadeira desconsideração cristã das imagens como ídolos até a fundamentação da religião no primitivo interesse escatológico humano, passando pela crença indiscriminada nas palavras de autoridades consolidadas. Alguém sabe se o líquido no momento da fotografia era realmente urina? Não, mas as pessoas acreditam que era, pois tomam o artista como uma autoridade e, por isso, são escarnecidas. E continuam sendo escarnecidas pela crença na mesma autoridade a cada passo que dão baseadas em reações morais e emocionais diante da obra que, afinal de contas, consiste apenas em pigmentos químicos sobre papel. Serrano cria uma armadilha inteligente, mas a todo momento insultuosa à religião. É arte? Sim. Desprezível e de mau gosto.

Mas a sanha normativa de Watson atinge o nonsense com a comparação entre a qualidade da produção de arte e a excelência em patinação. Esportes não lidam com a elaboração de pensamentos, exploração de linguagens ou criação. A arte conceitual, também descrita em tons de ódio como "guerra contra o objetivismo", tampouco está sozinha na batalha. A arte só pode existir quando o que foi agregado à criação humana transcende a mera objetividade. Sujeito e objeto criado se fundem, estabelecem trans-subjetivações, o objeto torna-se registro e meio de transmissão de ideias e valores. Toda arte é uma guerra contra o simples objetivismo. Quem quiser objetificação que procure o quantificável, não o qualificável, não a arte.

Ao contrário do que afirma insistentemente Watson, a arte moderna, como qualquer outra atividade humana, não demanda atenção nem elogios de quem quer que seja. Ninguém está minimamente obrigado a dar atenção a obras ou artistas de tal ou qual tendência, linguagem ou estilo. Tudo o que é apresentado em museus destinados à produção moderna e contemporânea pode ser solenemente ignorado por quem não tiver interesse no assunto, da mesma maneira que são ignoradas pesquisas sobre formigas, observações de galáxias e reuniões governamentais que consomem milhões sem que sejam atacadas pela nulidade de resultado.

Cada um escolhe aquilo com que irá ocupar a vida e, curiosamente, à obsessão de parcelas da opinião pública em atacar artistas modernos e contemporâneos não se segue o mais ínfimo interesse pelo estudo da produção tradicional. Artistas tradicionais, em especial no Brasil, onde o vídeo de Watson tem sido largamente propagado, padecem com o completo desprezo do público que se diz defensor da arte por eles produzida. Se há uma verdade conhecida no meio de arte, é a de que defensores do tradicionalismo não consomem arte. Não encomendam retratos nem paisagens a pintores, raramente compram livros sobre o assunto ou buscam informações que não sejam as oferecidas em roteiros de viagem. No máximo, decoram a casa com reproduções, telas de lojas ou, raridade das raridades, com uma aquisição de antiquário. Mas a televisão, o carro, o celular - ah, esses são escolhidos com esmero! Pagos a prestações e com orgulho! A verdadeira hierarquia de valores se atesta na prática, na escolha dos gastos, não na jactância de quem inventa desculpas para o próprio descomprometimento com a manutenção daquilo que julga superior. Isso é triste, incomoda, mas são fatos. Os que mais valorizam a linguagem tradicional na arte, os que mais deveriam incentivá-la com estudos e aquisições, não gastam um centavo com ela, pois acreditam que os outros é que devem gastar, em especial os ricos a quem tanto xingam por consumir arte moderna, e o governo - aquele mesmo governo que defendem como mero gerente de um Estado mínimo. As premissas e conclusões simplesmente não batem.

As formulações econômico-estéticas de Watson são estapafúrdias. É da mais profunda candura acreditar, como propõe, que o establishment se ressentiria do fim da arte conceitual e da queda na frequência de museus dedicados ao gênero. Todo o valor econômico da arte, seja de museus, de grandes galerias ou casas de leilão, é descaradamente artificial, baseado na multiplicação de cifras e valorização interna de um mercado alheio a gritos e ofensas de youtubers. No mundo onde robôs realizam operações na bolsa de valores, efetuando milhares de cálculos de lucro em centésimos de milésimos de segundo, conectados diretamente à central acionária por fibras óticas que deixam o operador humano para trás com obsoletas conexões a cabo, satélites e máquinas de calcular, em pouquíssimo tempo obras de arte, modernas e antigas, chegarão à casa dos bilhões de dólares. É lamentável não ser rico e não participar do jogo, mas mais lamentável ainda é vir a público espernear bobeiras, ressentimentos e desinformação. Os bilionários que frequentam a Christie's estão cada vez mais ricos, enquanto Watson, se tivesse dinheiro, seria mais um a torrar em diversões banais, carros descartáveis e equipamentos eletrônicos que a cada ano se tornam obsoletos. Com arte sabe-se que não gastaria um centavo, já que não gasta sequer tempo na internet com informações gratuitas sobre o assunto.

O interesse por arte conceitual, abordado obsessivamente pelo youtuber, é apenas um entre tantos outros interesses nesse universo. Interesses surgem e arrefecem. Nas últimas décadas, a diminuição do interesse pela pintura de Teniers, Murillo e dos Ruysdael foi seguida pela valorização do período Maneirista italiano. Se a música renascentista e barroca entrou em moda a partir de 1950, o repertório operístico do século XIX foi redimensionado na programação dos frequentadores de concertos. Beethoven anda desprezado nas últimas décadas, mas a música contemporânea, quem diria, tem caído no gosto do público europeu e americano. A arquitetura moderna será a próxima bola da vez.

A arte está em constante reavaliação, mas isso demora a ser percebido no Brasil, onde as coisas chegam com dez, vinte anos de atraso. Se o objetivo verdadeiro de alguém for o estudo crítico da produção contemporânea, as análises da mexicana Avelina Lésper oferecem uma substância infinitamente superior e mais embasada do que as besteiras propagadas por Watson. Muito do que Avelina pretere decorre do gosto pessoal. Mesmo assim, sozinha, em bancas onde não raro enfrenta, além da plateia, quatro ou cinco antagonistas mais bem preparados, bate e apanha com admirável cultura e honradez.

Quanto às opiniões de Watson sobre arte, seu histrionismo, desconhecimento e ranger de dentes o condenam ao total descrédito. Mas trata-se de alguém que angariou público amplo, principalmente entre brasileiros descontentes com o atual estado de coisas. Como lembra Boileau nos versos escolhidos para epígrafe, a censura à ignorância preserva méritos. E um pouco de estudo e de boa vontade logo revelariam aos ouvintes de Watson a existência de inúmeros bons artistas contemporâneos à espera de reconhecimento e admiração.

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