domingo, 14 de abril de 2024

Danilo Ribeiro na Galeria Artur Fidalgo

 

Danilo Ribeiro - "Cinelândia", 2024
Acrílica e grafite s/ tela 112 x 150 cm


Quem esteve na Galeria Artur Fidalgo para a abertura de "Idílio Tropical", pôde acompanhar a estreia do mais recente capítulo da trajetória do pintor Danilo Ribeiro. Danilo, que na década de 2010 explorava as relações intrínsecas de sua geração com a linguagem dos videogames, voltou em seguida seu olhar antropológico para o cenário urbano, abordando personagens e a iconografia carioca. Agora, em sua nova série, se debruça sobre conhecidas paisagens do Rio de Janeiro.

É fato que cada geração não apenas vive uma cidade diferente, mas a compreende, estetica e existencialmente, de um modo particular. A paisagem pode ser a mesma, ou com pequenas ou grandes alterações, mas as consciências que nela habitam mudam, renunciam a antigos julgamentos e voltam o interesse para outros aspectos da vida e urbanos. Assim, a cidade se transforma não apenas porque prédios e viadutos foram construídos ou receberam novas cores, mas porque novos olhares a percebem, sob novas égides e perspectivas. O tal espírito do tempo é espírito precisamente por isso: por ser imaterial, e Danilo se encarrega de apreender e estabelecer essas novas dimensões pelas quais o cenário urbano é registrado e vivenciado.



Mantendo-se fiel ao observável, Danilo lança uma visão própria sobre essas paisagens tão conhecidas. E é a experiência conquistada em trabalhos anteriores que possibilita que as diferentes dimensões coexistam nas imagens, num diálogo do atual com a tradição de pintores e fotógrafos observadores do cotidiano carioca, como Debret e Augusto Malta. Para os familiarizados com esse repertório, um ar nostálgico permeia uma ou outra obra, mas prevalece sempre a vivência atual, o testemunho do que a cidade tem de mutável e imutável, dos que hoje nela circulam e habitam.

As paisagens de Danilo são sinceras, sem afetações nem ufanismos. Discreto, sua personalidade não se sobrepõe aos temas. Ele deixa que as imagens falem por si, livres da interferência de mensagens explícitas ou subjacentes. Não embeleza, tampouco esconde. Seu pensamento está na escolha mesma dos temas e seu compromisso é com a cidade e com quem a ama, com sua história, sua graça e ângulos peculiares.



Com curadoria de Vanda Klabin, a seleção de acrílicas, guaches e aquarelas de Danilo para a mostra "Idílio Tropical" oferece uma comunhão ao redor das experiências de um Rio de Janeiro que não cansa de fascinar. E proporciona ao carioca de hoje um reencontro consigo mesmo.



segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Adeus ao Maksoud Plaza Hotel

Na última vez que estive em São Paulo, me hospedei no Maksoud Plaza. O hotel foi construído no final dos anos 70 por Henry Maksoud, empresário das antigas, bastião do liberalismo econômico e responsável, entre outras façanhas, pelas obras do Galeão, no Rio de Janeiro.
O projeto do edifício é de Paulo Lucio de Brito, que cuidou dos detalhes para tornar o empreendimento uma referência também arquitetônica em hotelaria. Em Estilo Internacional e flertando com o Brutalismo, o interior foi finalizado com painéis de Maria Bonomi, telas de Alfredo Volpi e Tomie Ohtake, um bronze do espanhol Diego Ortega e a icônica escultura pendente de Yutaka Toyota sobre o lobby principal.
A lista de hóspedes ilustres do Maksoud é imensa e vai de Ray Charles a Margareth Thatcher, passando por Mick Jagger, Björk, Pedro Almodóvar e os príncipes de Mônaco. No auditório se apresentaram lendas como Frank Sinatra, Tom Jobim, Julio Iglesias, Billy Eckstine, Michel Legrand, Earl Hines e Sammy Davis Jr. Os concertos semanais de jazz se tornaram célebres e as festas de fim de ano se consagraram pela elegância.
Do mundo do entretenimento à economia e política, inúmeros negócios e acordos foram firmados nos salões e suítes do hotel.
Apesar da história fascinante, as dificuldades enfrentadas pelo Maksoud eram evidentes na última vez que estive por lá. As janelas já não eram das mais limpas, uma rede de contenção no lobby alertava da possível queda de detritos e o serviço de reservas estava confuso. Fui colocado num quarto uma categoria abaixo da contratada, mas tudo acabou numa compensação diária em iguarias.
Desde o fim dos anos 2000 o Maksoud se arrastava num imbroglio, atolado em cobranças. A morte de seu fundador, em 2014, tornou a situação ainda mais crítica, até que, em Dezembro de 2021, o hotel encerrou as atividades.
Ficaram as recordações de tempos que não voltam mais.







quinta-feira, 31 de março de 2022

Arte para além da bolha

Quem quer que saia da bolha e acompanhe o que, de fato, há na atual produção de arte, percebe que vivemos um período de múltiplos ecletismos. Já não se pode dizer nem mesmo que grandes projetos - estilísticos, ideológicos, de linguagem, os ismos - morreram, porque a própria ideia de um projeto para a arte está sepultada. O artista de hoje segue objetivos e processos criativos próprios, dá continuidade a vertentes que julga passíveis de exploração. Ao lado dos NFTs, a pintura tradicional, de cenas e retratos, continua seu rumo pelas mãos de pintores independentes ou agremiados em sociedades mantenedoras de antigos gêneros. Obras tridimensionais, derivadas das instalações e assemblages, performances, propostas sonoras, olfativas, táteis - tudo isso convive com a velha prática de figuras e bustos em bronze e mármore. O fim da História, o fim da beleza, o fim da Arte, o fim disso, daquilo - o tempo dos manifestos e declarações impactantes ficou para trás e as incursões por esse terreno soam demodées, merecendo, no máximo, uma condescendente risada.

Roberto Ferri - Prisão de Lágrimas
óleo sore tela, 40 x 60 cm

As coisas tomaram orientação mais aberta e, hoje, por mais que alguém prefira linguagens novas, dificilmente deixará de reconhecer o valor de um Roberto Ferri, por exemplo. Há duas décadas nomes como Ai Weiwei, Ron Mueck, Anish Kapoor e Olafur Eliasson arrebanham multidões para mostras de circuito internacional sem que os ataques dos que desprezam a arte contemporânea surtam qualquer efeito. Tampouco importa o intelectualismo dos que desdenham do gosto do público e de artistas populares como esses. Vaticinar que não representam a arte contemporânea, que lhes falta conteúdo, qualquer que seja, que tal ou qual obra atenta contra a moral e os bons costumes, que a produção atual é um lixo - tudo isso encontra ressonância apenas em nichos sectários.

Olafur Eliasson - The Weather Project, 2004

Esse processo de diversificação ocorreu sem dúvidas por razões econômicas, afinal oferta e demanda se atendem. Mas o fetiche economicista ficou igualmente para trás, dando espaço a outras visões, tão ou mais importantes para a compreensão de fenômenos históricos e culturais. No que se refere ao cenário de artes, um dos fatores é o descrédito em que caíram os críticos e historiadores. Basta ler textos de exposições para se atestar que os primeiros perdem-se facilmente em uma linguagem confusa, repleta de jargões. Ler esses textos é ter a impressão que podem significar qualquer coisa, ou absolutamente nada. Já os historiadores abraçam grandes construções, de belíssima envergadura, mas que em grande parte se sustentam pelo que deixam de fora. Histórias da Arte devem ser vistas como a exposição de uma linha geral de contexto e criação, não como autoridades eliminadoras de autores e obras. Histórias da Arte são essenciais, tanto quanto é essencial deixá-las de lado para se entender, de fato, o que é a Arte, que se encontra em obras, não na História.

À já conhecida democratização do acesso à informação pela internet segue-se o declínio dos órgãos de imprensa, que abdicaram das seções culturais. O jornalismo de hoje contenta-se com a disputa política, com a derrubada ou defesa de nomes e, quando abordada, a arte é quase sempre diminuída, rebaixada ao entretenimento e lugar-comum, quando não confundida com a indústria cultural. Nas raras ocasiões em que lhe é concedida abordagem mais específica, a exiguidade de espaço impede o desenvolvimento de análises. Ler jornais hoje é se perguntar se seriam possíveis fenômenos da crítica como Robert Hughes, Brian Sewell, Michael Gibson, Mario Pedrosa - e saber de antemão que a resposta é negativa. Críticos hoje se fazem por meios próprios, não estão mais em uma relação de agregação de valores com veículos de comunicação. Isso é lamentável pois a falta de projeção de vozes contribui para a manutenção de bolhas de pensamento, inclusive a dos próprios críticos, que acabam aprofundados no especialismo, cada vez mais distantes do público.

Acompanhar a produção de arte hoje é tarefa individual e personalizada. É eleger os próprios referenciais, seguir perfis de artistas no instagram, páginas de revistas e galerias, fazer pesquisas online, ler análises e comentários independentes. E, claro, frequentar o circuito de exposições. Essas práticas, quando não cerceadas por ditames ideológicos, levam à descoberta e ao cultivo do trabalho de uma plêiade artistas que seguem as mais variadas tendências e linguagens. Levam a novas leituras e novos julgamentos para demais âmbitos da sociedade e também a possibilidades, novas e esquecidas, para a vida. E levam sobretudo à desconsideração dos que se arvoram ao proclamar o fim da arte, o fim da História, o fim da beleza, disso ou daquilo. Slogans são deformadores da realidade. São um condensado de ideias previamente selecionadas com o objetivo de limitar a visão e compreensão dos fatos. Os que abandonam a bolha entram em contato com um universo rico, em que as conquistas e interesses humanos coexistem de formas múltiplas e complementares.

Paulo Vivacqua - Nympheas, 2015
Vidro, espelho, alto-falantes e amplificadores


domingo, 20 de fevereiro de 2022

A Afirmação Modernista no Paço Imperial

Entre as décadas de 1930 e 1970, a consolidação das instituições públicas do país esteve acompanhada por iniciativas de fomento à arte. Pintores e escultores eram contratados para executar painéis em edifícios, telas e esculturas eram adquiridas para acervos, exposições e premiações eram organizadas. Assim, diante do tímido mercado interno, o Estado aparecia como um dos pilares econômicos da produção nacional. Essas iniciativas, porém, não eram contínuas e nem sempre atendiam a critérios muito claros. Não raro eram coordenadas por artistas que figuravam entre os próprios servidores das instituições, e que colaboravam, a seu modo, com o empreendimento.

Com o redirecionamento econômico a partir dos anos 90, vários desses órgãos estatais foram privatizados e deixaram como legado seus acervos. Um deles é o pertencente ao antigo Banerj, atualmente mantido pela Funarj e selecionado para a mostra A Afirmação Modernista, no Paço Imperial.

Quem frequenta o circuito cultural do Rio de Janeiro reconhecerá alguns dos destaques. As telas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, Emeric Mercier e Manabu Mabe estiveram ainda há pouco em outras mostras, no BNDES e CCBB. Mas o que torna especial A Afirmação Modernista não é propriamente uma ou outra obra, e sim a possibilidade de se conferir esse acervo em um só lugar. Desse modo, além de apreciar telas e gravuras, o visitante pode confrontá-las entre si, frente ao conjunto, questionar as escolhas de aquisição do banco - enfim, uma oportunidade que tão cedo não deverá se repetir.

Eugenio Sigaud comércio rua exposição afirmação modernista paço imperial
Eugênio Sigaud - A Escultura do Comércio e a Rua, 1942

Vemos, por exemplo, um Eugênio Sigaud da década de 1940, sua melhor fase. Por uma perspectiva derivada do expressionismo e da vanguarda russa, a cidade surge como palco de transformações econômicas e sociais. Aos pés de Mercúrio, deus do comércio, velhas práticas humanas convivem com os símbolos da era industrial. Sigaud subtrai a natureza, mantem cores em tons baixos, expondo sua visão crítica dos novos tempos. Mas não abandona a esperança, aludida por pombas que cruzam, quase imperceptíveis, a cena.

Di Cavalcanti - Brasil em quatro fases coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Di Cavalcanti - Brasil em Quatro Fases, 1965

Seguindo em frente, os quatro grandes painéis de Di Cavalcanti sobre períodos da História nacional dão testemunho da manutenção de verve cultural e antropológica do artista. Aqui não estamos diante de questionamentos ou inquietações. O mais importante é a sobrevivência de Di à recusa em ingressar nas correntes geométricas e abstratas da década de 1950. As figuras, delineadas, são bem distintas das que um dia caracterizaram seu trabalho. Culminam em certo efeito decorativo, onde se notam maneirismos à la Matisse, Léger e da arte dos vitrais.

Isabel Pons - Poblet 1965 exposição afirmação modernista coleção banerj
Isabel Pons - Poblet, 1965

Na sala dedicada a obras gráficas, uma curiosa água tinta de Isabel Pons composta por blocos agregados evoca uma estrutura de grandes dimensões. Um confronto proveitoso pode ser feito com dois óleos de Henrique Cavalleiro, que demonstram assimilações Cézanneanas. Um deles, de uma paisagem com montanhas, está quase liberto do referencial temático, produto que é do flerte com uma linguagem de anseios mais puros e autônomos. Comparação mais sutil pode ser feita então com uma obra de Alvim Menge. Esse pintor pouco lembrado legou obras de interesse também iconográfico e está representado por uma paisagem de Copacabana que em muito corresponde às de Manoel Santiago, seja nas dimensões, seja na paleta ou pinceladas.

Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas 1926 coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Henrique Cavalleiro - Montanhas Cariocas, 1926

Alvim Menge - Copacabana coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Alvim Menge - Copacabana, início Séc.XX

Mas nem só de século XX se constitui a coleção Banerj. Há, por exemplo, além de um variado conjunto de gravuras da época do Império, um luminoso óleo de Benno Treidler e uma intrigante composição de Estevão Silva com objetos de caça. Nessa, a fuga da obviedade na disposição dos elementos faz com que, mesmo tendo sido pintada em 1889, se irmane em espírito às experiências da abstração.

Benno Treidler - rio de janeiro coleção banerj
Benno Treidler - Entrada da Barra do Rio de Janeiro


Estevão Silva - Caça - pintores negros brasileiros coleção banerj exposição afirmação modernista paço imperial
Estevão Silva - Caça, 1889

A mostra segue com obras de Pancetti, Anita Malfatti, Burle Marx, Eliseu Visconti, Fayga Ostrower, Carybé e tantos nomes de vulto que, por si, encheriam vários artigos. Mas encerremos com um dos temas que subjazem à exposição: o critério de aquisição das obras pelo antigo banco.
Acervos como o do Banerj são, sem dúvida, fruto de preferências dos que os constituíram. José Paulo Moreira da Fonseca, artista, advogado da instituição e um dos responsáveis pela seleção das obras, era tido como pouco afeito às correntes Concreta, Neoconcreta e demais manifestações surgidas a partir da segunda metade dos anos 60. 
Isso explicaria a falta de representatividade dessas vertentes no acervo?
A resposta não é tão simples. A escolha de obras para uma instituição pública impõe a conciliação entre verbas, prazos, artistas e obras disponíveis. Cada instituição possui características próprias, sejam relativas à estrutura de gestão e funcionamento, sejam relacionadas aos espaços a serem ocupados e seus ocupantes. Cada instituição presta-se a uma finalidade específica e está implementada em uma concepção arquitetônica específica, o que resulta em uma identidade própria e em condições e razões próprias para a seleção das obras. Para esse cenário também concorrem vozes alheias ao mundo da arte, como simpatias e gosto de diretores, dos que os indicaram e de demais funcionários.
O acervo de um banco estatal não tem pretensões museológicas e também nada indica que, sem a privatização, as lacunas do conjunto não teriam sido sanadas. Para compensar as ausências, pode-se argumentar que alguns artistas presentes tiveram sua rara oportunidade de figurar em uma coleção pública e os não representados já figuravam no acervo de outras instituições.
No fim, essas considerações pouco importam. Se a coleção Banerj apresenta lacunas, por outro lado não peca pela escassez de obras nem por dúvidas quanto a sua qualidade.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Estado Bruto no MAM RJ

Os novos ares que circulam pelo MAM renderam mais uma exposição notável, dessa vez ao encontro de certa imaginação do público a respeito do acervo do museu. Não há visitante que nunca tenha se perguntado sobre o conteúdo da coleção, as obras guardadas, pouco expostas, e o porquê do oblívio.  Uma incursão pelo acervo de esculturas - melhor dizendo, obras tridimensionais - do MAM é oferecida pelos curadores da mostra Estado Bruto. Uma incursão nada comum, com o maior número dessas obras apresentado em toda a história do museu.

Estado Bruto deixa de lado o esquema tradicional de cronologias, releituras ou defesas de tal ou qual ponto de vista sobre determinado artista ou assunto. É claro que um caráter panorâmico permeia a proposta, mas de modo difuso, intercruzado, já que as obras não estão dispostas segundo uma sequência de criação. Elas estão agrupadas em diálogos, com suas distintas linguagens, abordagens, concordâncias, discordâncias, antíteses, analogias e, em especial, suas complementaridades. Cabe ao visitante colocar em ato essa interação potencial e também tirar suas próprias conclusões sobre a razão de terem sido, historicamente, mais ou menos apresentadas. Não é necessário que se chegue a um juízo único nem previamente desejado a partir dessas interações. O que importa, afinal, é a multiplicidade de pontos de vista e a celebração da arte e do acervo do museu.

Vivemos um tempo em que narrativas oficiais caíram em descrédito e instituições se renovam, buscam essa reaproximação do público afastado pelo velho exclusivismo do meio cultural. Hoje, se alguém sente-se excluído de um círculo, encontra outros círculos com um toque no celular, reúne-se a pessoas com ideias e desejos semelhantes - e dá uma banana aos deuses em fajutos pedestais. Um museu, em especial dedicado à arte moderna e contemporânea, precisa guiar-se por esses parâmetros sociais e valorativos vigentes na 3a década do século XXI. E nos últimos anos, a nova direção do MAM tem correspondido cada vez mais a esses preceitos.

O que vem ocorrendo no MAM demonstra que, ao contrário do que muitos creem, aproximar-se do público nada tem a ver com rebaixar o nível das atividades, muito menos abdicar da missão formativa e do status referencial do museu. Isso fica claro em Estado Bruto, onde, por mais flexíveis e propositivos que sejam os critérios da mostra, há um elaborado pensamento na seleção de obras, na separação e disposição por diferentes espaços e mesas e na correlação estabelecida para as peças. Nada é aleatório, nem voltado ao simples gozo visual. Em cada opção subjazem dimensões pedagógicas, fruitivas, educativas.

Vemos assim, lado a lado, criações como Integração, de Paiva Brasil, a cerâmica A Mãe, de Antonio Poteiro e os Asteroides, de Wilson Piran. Diferentes matérias estão presentes nessa interação: a madeira, o barro e o acrílico. À natureza de uns se contrapõe a artificialidade do outro. À transparência dos Asteroides se opõe a opacidade das demais. O rigor da ortogonia de raízes Concretistas é contraposto pela organicidade manual. Entre formas artificiais está uma essencialmente biológica, impregnada de valores, mas transfigurada pelo mundo interior do artista. À tese da indústria se amalgama a antítese inevitável da vida.

Obras de Paiva Brasil - Antonio Poteiro - Wilson Pirani

Em outra estante, a dimensão humana do amor e do erotismo marca presença com Ondine, de Henri Laurens, Reino Distante, de Márcia X, Baú de Palavras, de Rosana Ricalde e um bronze sem título, de Tunga. O desejo pela posse da matéria lida com a intangibilidade e uma fusão impossível, com pensamentos ocultos e a presença do desconhecido, do inclassificável. São obras de linguagens conflitantes, reunidas por uma complementaridade necessária.

Obras de Marcia X - Rosana Ricalde - Henri Laurens

É uma delícia viver esses dias em que obras como Mão de Guerreiro, de Bourdelle, Mademoiselle Pogany, de Brancusi e Icosaedro, de Felipe Barbosa são postas lado a lado. Em um diálogo assim, hierarquias e autoridades se desdizem, se diluem, como nas conversas dos habitantes da cidade maravilhosa que abriga esse precioso museu, renovado por preciosos ares.

Obras de Brancusi - Felipe Barbosa - Antoine Bourdelle

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Anthony Howe - O Constante Devir

 


A obra de Anthony Howe pertence à categoria ampla e sob muitos aspectos vaga denominada arte cinética. Ampla porque engloba criações que remontam aos Futuristas e Construtivistas russos, passando por Marcel Duchamp, Calder, Palatnik, Nicolas Schoffer e experiências da Op Art. E vaga por referir-se a obras tão díspares entre si, unidas pela simples característica de terem partes móveis.

Categorias e terminologias são convenções na arte; não devem ser tomadas ao pé da letra. Do contrário, restringem a investigação do artista e a relação do público com a obra, pelo estabelecimento de limites interpretativos e enfoques predeterminados. Convenções, portanto, têm muito de confusão e indistinção - e é precisamente disso que têm sido objeto as obras de Anthony Howe. Seus referenciais são buscados na ficção, em vez de na própria arte. Diz-se que são autômatos, quase seres vivos, convergência da biologia e avanços tecnológicos. O próprio artista contribui para fomentar essa aura ficcional, ao relacionar nominalmente as obras a seres da natureza e declarar a existência de uma dimensão futurística no que faz. 

Partindo de preceitos confusos, a fruição convencionada para as obras de Howe segue por descaminhos: A dita fusão da natureza com o artificial decorre da alusão formal a esqueletos, flores e artrópodes que, rotacionados pelo vento, suscitam a ideia de vida. O sugerido teor futurístico, por sua vez, evoca um porvir alimentado há quatro décadas pelo cinema, em que a humanidade, tendo perdido o lastro estético tradicional, criaria artefatos a partir de despojos da antiga civilização, com uma simbólica nova, de beleza peculiar, até mesmo bizarra.

Tudo isso pode parecer interessante como ficção, mas desvirtua uma produção rica e inventiva, deixando de lado seu real valor. Tão logo removidas desse cenário e consideradas à luz da própria arte, as obras de Howe conquistam uma posição de relevo na produção cinética, dialogando com suas matrizes no Futurismo, Construtivismo e Op Art. Se seus precedentes, como Schoffer e Palatnik requeriam mecanismos elétricos para o movimento controlado, as criações de Howe movem-se como cata-ventos, por forças imprevisíveis, da própria natureza. Se Schoffer e Palatnik criavam para interiores e lidavam com luz artificial, Howe produz para ambientes externos e explora a reflexão da luz solar, em consonância com o ideário contemporâneo de sustentabilidade. Muito mais do que aludir a um porvir fictício, o artista realiza, no presente, o futuro um dia idealizado: de uma arte em que convergem, física e simbolicamente, indústria e natureza.

Obras cinéticas de Nicolas Schoffer e Abraham Palatnik

A consideração dessa produção à luz de suas antigas congêneres também demonstra que, por cinéticas que sejam, consistem em armações tão pousadas sobre o solo quanto uma escultura tradicional. Elas existem como um sistema fixo, com a especificidade de que parte de seus componentes se projetam e se retraem, podendo seguir esse ciclo indefinidamente. Ao se moverem, esses componentes oferecem uma profusão de efeitos visuais derivados de suas relações não apenas entre si, mas também com as condições do ambiente e o espaço. Como uma parte dos componentes se projeta enquanto outra se retrai, a obra renova, continuamente, por sua própria natureza formal e relacional, suas possibilidades.

As criações de Howe seguem, portanto, um processo de metamorfose cíclica, em uma concepção ao mesmo tempo dinâmica e estática. Tal característica é explorada desde longa data na arte, por seus paralelos com o pensamento e a vida. Na música, por exemplo, encontra-se na polifonia da renascença franco-flamenga de Ockeghem e Dufay, cuja estrutura proporciona nem tanto uma experiência de desenvolvimento sequencial, de começo, meio e fim. Em vez disso, nessas obras prevalece uma transformação sonora pelos encontros das notas, em acordes ou intervalos, que se expandem e se propagam no espaço. Modernamente, esse recurso foi retomado por Giorgy Ligeti em obras como Atmosphères, Requiem e Lux Aeterna. Passando por vertentes minimalistas, chegou aos dias de hoje como base da chamada Drone Music. Na escultura tradicional, esse processo de projeção e retração aparece de modo contingente, mas notável, nas composições plásticas do período Helenístico e Barroco. Já na Arquitetura, pode ser encontrada nas fachadas de Borromini e, contemporaneamente, de modo pleno nas criações de Frank Gehry, cujas extrusões constituem verdadeiras irrupções da obra no espaço.

As obras de Howe, a exemplo das ideias pré-Socráticas, seguem uma alternância de contrários. Como o rio de Crátilo, são aquilo em que se tornam. São um constante devir. Não existem cristalizadas no mundo, mas em relação a ele, influenciando-o pela sua presença e sendo por ele influenciadas, realizando, nesse processo, sua natureza mais intrínseca.

A própria trajetória de Howe segue esse padrão de alternâncias. Tendo começado a carreira como pintor, encontrou os conhecidos obstáculos do meio e foi obrigado a mudar de profissão. Passou a trabalhar em uma montadora de móveis de escritório, onde entrou em contato com as potências expressivas do metal. Dessa experiência, ressurgiu como artista, sob a égide de sua atual produção cinética.

Essa é a essência de Anthony Howe, revelada em sua vida e em sua arte. Suas obras, consideradas desde o ponto de vista histórico e de suas correlações filosóficas e humanas, abrem caminhos para novas investigações e derivações cinéticas, tanto suas quanto de demais artistas - o que não ocorre quando julgadas por meras analogias biológicas e futurísticas estabelecidas pela convenção.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Pietrina Checcacci em Retrospectiva


Pensamentos, 1965  e  Tempo da Terra, 1978

Cerca de cem obras, entre telas, esculturas, selos e medalhas, foram escolhidas para a mostra 60 Anos de Arte, no Centro Cultural Correios-RJ, dedicada a Pietrina Checcacci. Nascida italiana, essa artista de temperamento afetuoso radicou-se ainda jovem no Brasil, onde se formou, na década de 1960, pela Escola Nacional de Belas Artes. Desde então, angariou prêmios e nunca parou de expor. Nos últimos anos, porém, seu nome tornou-se mais frequente nos leilões e antiquários. Uma retrospectiva contribui para divulgá-la como artista atuante, e reconduzi-la ao devido lugar.

Para o olhar atento, não passam despercebidas certas constâncias nessa produção. Marcadas pela experimentação técnica e temática, as telas iniciais de Pietrina são de um figurativismo carregado de inquietações. Mas como que transubstanciando influências e preceitos, a artista logo encontrou uma linguagem mais leve, fluida, de tons claros, que revelava mais de si e cuja exploração foi levada adiante. Essa mudança também pavimentou o caminho para sua escultura, com o aporte de preceitos materiais, físicos, mais ousados. Se parece haver um antagonismo entre as telas iniciais e as posteriores, fica claro, porém, que sempre foram dotadas de uma energia latente, reveladora de um estado de espírito que ordena as formas e estrutura as composições.

Decifra-me ou te Devoro, 1983  e  Verde e Rosa, 2020

Essa produção também é marcada por um acentuado espírito do tempo: na técnica, na paleta, na composição e, a partir da década de 1970, na visão holística que analoga o corpo humano à natureza e a forças universais. Há quem renegue abordagens desse tipo, pelo risco de excesso de subjetivismo e de uma sujeição a considerações externas à arte. Há quem resista ao fato de uma escultura poder servir como suporte de mesas, serre-livres ou atender outras utilidades, contrariando as expectativas mais estritas de separação entre arte e vida prática.

Mas é a própria artista quem explica, sem rodeios, o que há em sua obra. Em uma entrevista da década de 1980, esclarece que a opção por retratar partes do corpo se deve ao potencial plástico de mãos, pernas e braços. E que o utilitarismo das esculturas visa trazer criatividade ao cotidiano, fazendo com que arte e vida se tornem indissociáveis.

De fato, mais do que a simples cópia da realidade visível, sua obra é eminentemente plástica. Mesmo explorando um repertório específico, suas telas estabelecem diferentes evocações e analogias a partir de configurações formais. Não estabelecem nem dependem de textos ou narrativas. São, muitas vezes, paisagens derivadas de corpos. As esculturas, por sua vez, não retratam indivíduos específicos: são lisas, reluzem em cores e brilho fortes, perfeitas em sua artificialidade.

Suas telas e obras tridimensionais se complementam, tanto em preceitos quanto pelo forte espírito da Pop Art. Se na pintura Pietrina busca algo transcendente, com ecos surrealistas, sua escultura é insinuante, explora as potências da forma e exercem apelo tátil. Vale sublinhar que essas criações tridimensionais não são esculturas no sentido estrito do termo, de desbastar e polir pedras, mas no amplo, de modelagens, que lança mão de técnicas atuais como fibras de vidro e pintura industrial.

Selene, 1985

A década de 2010 assistiu a retomada de linguagens e estéticas de um passado não muito distante. Em 2021, jovens escutam Rock, vestem New Wave, cultuam antigos videogames e objetos vintage. Assistimos a revalorização do historicismo na arquitetura, o retorno dos discos de vinil, das plantas à decoração de interiores. A tecnologia e as mídias sociais possibilitaram essa redescoberta do que estava esquecido, sonegado pelos donos de narrativas oficiais. Pessoas com interesses em comum se aproximam, artistas e público se encontram em postagens na internet. Essa livre busca e incorporação de referenciais levou à emancipação individual em todos os níveis e ao consequente colapso de projetos e considerações exclusivistas da Arte. A consciência de que verdades não passavam de versões não poderia ter outro desfecho: pôs em xeque até mesmo a História dessa disciplina tal qual era estudada nos últimos séculos.

Uma visão da arte brasileira só será válida se abranger o múltiplo, as variadas correntes e vertentes em voga e que se foram, e não cânones nem recortes, com preceitos e finalidades preestabelecidos. Espaços como a Caixa Cultural, BNDES e os Centros Culturais da Justiça Federal e dos Correios têm prestado uma valiosa contribuição à divulgação de nossa produção cultural. No caso desse último, são dignas de nota as mostras dedicadas a Roberto Moriconi, Flora Morgan-Snell e artistas de linhagens mais antigas, como Edgard Cognat.

A arte das décadas de 1960 e 1970 nos parece mais próxima hoje do que parecia 20 ou 30 anos atrás. E Pietrina Checcacci tem a oferecer algo livre, telúrico, etéreo, e também sensual, ousado, a esse período de ecletismo que vivemos, ainda inclassificável.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Novos Ares no MAM-RJ

A nova iluminação do térreo do MAM

2021 começou pedindo uma visita para conferir a evolução das mudanças no MAM, que desde o ano passado conta com nova diretoria e uma importante restituição à concepção original do edifício. O salão do último andar voltou a ter vista para a baía de Guanabara, obstruída durante anos por painéis e por uma infame película sobre os vidros. A inovadora política de ingressos, com valor sugerido, agora proporciona a muitos não apenas visitar a instituição pela primeira ou por mais vezes, como também desfrutar essa antiga experiência de integração entre interior e exterior, oferecida pela arquitetura de Affonso Eduardo Reidy.

É um prazer reencontrar obras icônicas do acervo, como o óleo sem título de Bruno Munari (1950), a Construção em Latão, de Max Bill (1937), e a tapeçaria Odisseia, de Le Corbusier (1948). Escolhidas para a mostra Realce pelos novos curadores, são criações que se coadunam historica e conceitualmente ao edifício. É igualmente proveitoso o contato com um conjunto representativo de Metaesquemas, na mostra em parceria com o MASP dedicada a Helio Oiticica, bem como circundar por generoso espaço os Núcleos, obras pendentes da fase seguinte do artista.

Vista da mostra de Hélio Oiticica

Dedicada aos Irmãos Campana, a panorâmica 35 Revoluções já nasceu histórica, tanto pelas circunstâncias enfrentadas na pandemia quanto, principalmente, pelo enfoque de uma brasilidade repleta de matérias, propriedades, cores e texturas - brasilidade sobretudo contemporânea, universalista. A montagem é exemplar. Quanto à concepção das demais mostras, alguns fatores não propiciam uma experiência equivalente. Na dedicada a Hélio Oiticica, a disposição dos Parangolés próximo à parede do salão principal estabelece um contraste de escala entre as peças e o ambiente, que as diminui. É verdade que o público é remetido assim ao caráter informal desses trajes-propostas, concebidos para o ar livre. Mas as criações ficariam melhor ao centro do salão, ou do lado oposto. No primeiro caso, o campo visual amplo ofereceria uma analogia com o céu aberto; no segundo, a altura mais baixa do mezanino instauraria uma relação pessoal direta com os trabalhos. Na mostra Cosmococa, voltada para a parceria entre Oiticica e Neville d'Almeida, grandes superfícies também são deixadas em branco, resultando em confusão para o público quanto ao trajeto e quantidade de material exposto.

É preciso tirar partido das potências arquitetônicas do MAM, sempre que possível. O fato é que estamos diante de desafios enfrentados a cada passo, dentro e fora da instituição, em tempos de exigências de distanciamento pessoal pelo surto de Coronavírus. Percalços de lado, a experiência de um Manabu Mabe (1968) e de um Cícero Dias (1951) banhados de luz natural no último andar dá testemunho da convergência própria e necessária àquelas fases da criação nacional, fazendo-nos pensar no que mais virá, quando as propostas de renovação puderem ser colocadas em prática sem as contingências atuais, alheias ao museu.

Mudanças costumam ter lenta acolhida, mas a direção de Fabio Szwarcwald e a curadoria de Pablo Lafuente e Keyna Eleison foram desde o início recebidas com simpatia. Saímos do MAM cheios de confiança e otimismo. E é disso que precisamos nesses momentos tão difíceis.



domingo, 12 de janeiro de 2020

Livro: Georgy Sviridov - Compositor Russo


        Nesse livro analiso a trajetória musical de Georgy Sviridov, compositor russo praticamente desconhecido no Ocidente.
        A descoberta de Sviridov inaugura uma nova visão da música do século XX e da relação que um artista pode manter com um regime autoritário. Escrevi, de maneira livre e descomprometida, o que penso a respeito do compositor e suas criações. Espero que meu estudo seja assim compreendido e que contribua para a divulgação do legado desse grande artista.


Download PDF, versão para celular: Georgy Sviridov - Compositor Russo




terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Análise de uma Obra de Arte Abstrata


Nesse vídeo explico como compreender e fruir uma tela abstrata.
O que está em jogo? Como se relacionar com a obra?


quinta-feira, 13 de junho de 2019

José Bechara - Presença, Espaço e Tempo


O início das atividades do carioca José Bechara (n.1957) foi marcado pela exploração de concepções pictóricas ampliadas, baseadas na conjugação, sobre superfícies como lona e couro, de tintas acrílicas e metais oxidados. Assentada numa consideração pessoal da tradição Construtiva, essa investida superou os limites bidimensionais e irrompeu no espaço. Obras em três dimensões ganharam a atenção do artista e passaram a coexistir com a pesquisa inicial, como perquirições paralelas e correlatas.

Em 2017, três dessas obras tridimensionais compuseram a mostra Fluxo Bruto, com curadoria de Beate Reifenscheid, no MAM-RJ. As criações demonstram o atual status dessas investigações, determinadas pela agregação de preceitos relacionais à fruição. Nelas, mais do que limitado à simples contemplação, o observador é convidado a operar, por si, igualmente o testemunho da indissociabilidade dos componentes temporais e espaciais das obras e a realizar, assim, o sentido integral das propostas.

Miss Lu, da série Esculturas Gráficas, 2007-2017

A primeira dessas obras é Miss Lu. Composta por cubos vazados, tratados de modo não-hierárquico, os elementos acusam de imediato uma desordem. Ao perscrutar a criação, o observador descobre, no entanto, que sua própria mobilidade revelará a razão estruturante daquilo que presencia. Aos poucos, a vivência dos diferentes pontos de vista experimentados é organizada, até que a concreção da experiência seja finalmente operada. Sobre a fragmentariedade dos instantes de percepção prevalece então a unidade intelectiva do conjunto. E o observador torna-se testemunha de que, para além da desordem apreendida pela visão, existe uma lógica dispositiva oferecida unicamente por sua experiência.

Angelas, 2017

Outra obra, Angelas, de 2017, se destaca pelo emprego de maciças esferas de mármore, cujo peso ultrapassa 1 tonelada. Grandes planos de vidros se intercalam aos elementos esféricos, todos pendentes. Solidez e fragilidade têm na força gravitacional um fator crítico, expondo a precariedade da relação. O mínimo contato levará à paradoxal desintegração da obra. Mas a inércia é absoluta, proporcionando uma surpreendente experiência de suspensão temporal.
Também aqui os elementos se equivalem, sem nenhuma hierarquia, já que o plano de vidro, elo materialmente frágil da relação, é responsável pela reflexão da esfera maciça - o que a torna, portanto, dependente da fragilidade de seu par. Na concepção integral da obra, a virtualidade - o reflexo - equivale em importância à materialidade. Uma inexistiria sem a outra, sendo, mais uma vez, a experiência sob múltiplos ângulos necessária à estruturação da compreensão do conjunto.

Sobre Amarelos, 2017

Semelhante exploração da reflexividade pode ser atestada em Sobre Amarelos, também de 2017. Nessa obra, dois cubos são intercalados por placas de vidro, foscas e transparentes. Enquanto a fosca opera a diluição da forma no espaço, a transparente a replica, estabelecendo um plano posterior que, ao promover uma ampliação espacial, estabelece também uma dimensão nova, virtual, para a consideração da presença do próprio observador no espaço.

Embora requeiram uma disposição intelectual, as três criações proporcionam um exercício analítico eminentemente empírico, sem qualquer pretensão normativa. O que é testemunhado refere-se ao contexto das obras e da arte, podendo ou não ser transposto, por analogias, a demais âmbitos da experiência humana.

Nas três criações, José Bechara proporciona distinções por vezes incompreendidas entre robustez e predominância, testemunho intelectual e sensorial, realidade e virtualidade, ordem e ponto de vista. Para a realização das propostas, a presença e mobilidade humana são imprescindíveis, o que reafirma o caráter participativo e o testemunho individual da arte.


terça-feira, 4 de junho de 2019

Arte com Roberto Ormond - Primeiro Programa


O primeiro vídeo de uma série iniciada em meu canal no Youtube


quarta-feira, 17 de abril de 2019

Flora Morgan-Snell: Pintora, Artista, Brasileira


Flora Morgan-Snell é uma artista esquecida. Seu nome não consta na história de nossa arte. Suas obras são ignoradas no Brasil. Pintora e escultora de orientação livre, colecionadora de prêmios como o Léonard de Vinci, do Salão de Arte Livre de Paris e de Escultura da Grécia, expositora em galerias como a Bernheim Jeune e no Museu de Arte Moderna da França, participante de eventos da UNESCO e organizadora de exposições de artistas contemporâneos brasileiros e estrangeiros na Europa, Flora não merece o ostracismo a que foi relegada.

Nascida em 1920, em São Paulo, a artista cresceu em Petrópolis e logo revelou a natureza autodidata. O interesse pelo corpo humano a levou aos livros de anatomia e a assistir campeonatos de luta, onde testemunhava a força e o movimento que abordaria em seu trabalho. Ao buscar estudo formal no Rio de Janeiro, a jovem acabou dispensada do curso. O motivo? Não havia mais nada que o professor pudesse lhe ensinar. Com 25 anos, participou de duas exposições na antiga capital federal e casou-se com Albert de Moustier, descendente da aristocracia francesa.

Com a união, Flora mudou-se para Paris, onde estabeleceu a imagem a que seria associada: pintando na mansão familiar, em meio a aves que criava, soltas, entre as obras. Vivia cercada de glamour. O nome real, de batismo, era Maria Angelina. Mas Flora, homenagem à deusa romana, agregava ainda mais encanto a sua personalidade. De elegância ímpar, a agora também Condessa de Moustier vinha com frequência ao Brasil, onde se destacava em eventos sociais e acabava nas colunas de jornal, como a de Ibrahim Sued, pelas homenagens recebidas mundo afora.

Em paralelo ao glamour, havia, porém, as circunstâncias do métier. Flora trabalhava em um meio dominado por homens e, sob muitos aspectos, averso à liberdade. Alguns episódios dão a dimensão de como sua presença era percebida nesse universo. Durante um concurso, o Grand Prix Léonard de Vinci, os jurados chegaram a imaginar que as obras eram, na verdade, de seu marido. Situação parecida ocorreu em 1959, quando, ao propor um monumento para Brasília, a obra acabou tida como trabalho masculino, dada a virilidade das figuras. No Brasil, a independência, seu grande trunfo, era justamente o que a condenava. Além de aristocrática e rica, Flora levava adiante a tradição figurativa, o que a afastava definitivamente das correntes predominantes no cenário nacional. Mas não dependia da crítica nem da venda de telas para sobreviver. Era bem relacionada. Criava para si e para os que a admiravam, atendendo encomendas particulares, institucionais e do Estado francês. Seguia aquilo em que acreditava, pintando a partir do que as obras significavam, representavam e proporcionavam, enquanto arte.

A  Pintura

Permeada de simbolismo, a pintura de Flora é baseada em uma fusão entre presente, passado e futuro. Sua concepção monumental, geralmente em painéis, potencializa a visão grandiosa e otimista que a artista nutria da modernidade. Para ela, essa fase histórica significava não uma ruptura, conforme a visão tradicional, mas uma elevação do status ontológico humano. A ascensão à nova era transcendia culturas, reunificava a espécie, realizando o pressuposto universalista moderno.

As diferença entre indivíduos são, por isso, reduzidas a um mínimo de atributos. Homens e mulheres não pertencem a classes ou raças. São miscigenados. Abstraídos de origem, simbolizam a potência vital em toda sua plenitude.

Essa pintura oferece uma antítese à visão atual, relativista e identitária, da pós-modernidade. Diante de sua concepção valorativa, o observador compreende a si como parte da epopeia humana e vislumbra um sentido para a vida que transcende sua própria existência. Nesse sentido, é preciso que as palavras da artista sejam compreendidas nos termos adequados. Flora dizia que fazia pintura brasileira. Basta olhar a iluminação das cenas; basta olhar os cabelos, as feições, a tez bronzeada, para encontrar nessas obras a atmosfera e os tipos nacionais. Em suas telas não há cenas de conflitos nem guerras, muito menos reabertura de antigas feridas, que julgava superadas. É sobre o pressuposto de um reencontro para a concórdia final que desenvolvia o pensamento. A fusão das raças, tal qual ocorrida no Brasil, participa, assim, da consecução da grandeza majestática reservada à humanidade.

No aspecto formal das obras, é o tratamento dado aos sucessivos planos que confere monumentalidade às composições. Linhas retas e curvas cruzam a tela entre as figuras, unificando eventos e dramatizando o espaço. Dominadas pelo forte desenho, as formas se desenvolvem em campos preenchidos por transições cromáticas que estabelecem volumes. A disposição das figuras e demais elementos em sequências de cheios e vazios concorre para o acentuado jogo de gesto e força, movimento e estaticidade. Ainda que haja hipertrofia dos corpos, predomina uma atenção honesta à musculatura, o que origina escorços notáveis.

Constituída por tons que escapam à realidade, a paleta indica que a ideia prevalece sobre o realismo. O propósito se reafirma na alternância entre figuras em perfil e perspectivadas, entre elementos conhecidos, biomórficos, e outros, inidentificáveis. A essa concepção integrada de ideia e linguagem se coaduna a elevação do status ontológico humano. O delineamento corporal e as coordenadas que cruzam a cena simbolizam a conquista do perene. Tendo atingido o estágio maduro, a humanidade participa agora das leis eternas. À antiga mortalidade da carne se uniu a ortogonia, que lhes garante a imutabilidade. Por isso as figuras pairam no ar, em uma faixa etária indefinível. Perpetuamente adultas, são imunes ao declínio do tempo. Venceram a indeterminação da juventude e as demais forças que imperam sobre a matéria.

Guiada por um rico lastro histórico, Flora explora os efeitos simbólicos e psicológicos da arte através da recorrência a composições, episódios e personagens do inventário ocidental. A Antiguidade é revisitada; a iconografia, transfigurada. Essa relação peculiar entre passado e presente imprime familiaridade às cenas, analogando História, obra e observador por uma inegável sensualidade. Não se deve, portanto, mitigar o erotismo subjacente às cenas. Os personagens vivem a eterna contemplação de si e o gozo do que representam. À primeira vista, a intenção pode parecer contraditada pela ocultação do sexo. O recurso, porém, logo acusa o efeito almejado. O olhar percorre as figuras, deixando aberto à imaginação o que não foi representado.

Enleada por sonhos grandiosos, Flora mantinha uma compreensão indissociável entre arte e vida. Nessa equação, a prevalência do idealismo certamente concorreu para o abandono da carreira após a morte do marido, no final da década de 1970. Àquela altura, suas obras se reportavam a uma concepção de mundo tida como superada. A pós-modernidade se impunha, as encomendas eram glórias passadas e o abalo familiar confrontou seu idealismo com as tragédias da realidade. Flora viveu até 2007, no completo ostracismo artístico.

Reavaliação

Flora Morgan-Snell manteve-se alijada do cenário nacional tanto pela residência na Europa quanto pela propensão à hegemonia de círculos pequenos, como o nosso meio de artes. Sua produção não se enquadrava no restrito panorama brasileiro e sua liberdade configurava até mesmo um insulto para os padrões locais. Seu compromisso com a independência, contudo, era inegociável. Havia, na Europa e nos Estados Unidos, um horizonte amplo e diversificado, onde expunha, encontrava cultivadores e encomendas, como as realizadas para os Correios de Les Sables d'Olonne e para a Igreja da Trindade, em Paris. No Brasil, era reconhecida por poucos. Apesar disso, foi na concórdia que assentou sua arte. Concórdia entre presente, passado e futuro. Concórdia entre referências, ideias e finalidades.

Se é inegável que, em plena década de 1970, suas criações se reportavam a um ideário caro à de 1950, o tempo, por sua vez, se encarrega de reduzir distâncias e propiciar o julgamento desse legado para além de critérios coetâneos e locais. As telas de Flora merecem ser compreendidas mais pela força do conteúdo do que pelo desejo, nunca tido, de inovação e originalidade. Seus recursos são abertamente colhidos da estatuária Clássica, de Tiepolo, Michelangelo e de ilustradores e muralistas de meados do século XX. São muitos os paralelismos entre sua produção e as de Per Krohg e Hans Erni, em especial a desse último, pela proximidade que  a artista mantinha ao cenário cultural suíço.

Ao abandonar as telas, Flora não permitiu que sua produção enveredasse pelas tristezas da vida, mantendo sua arte como eterna lição de independência, otimismo e concórdia.


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Mais sobre a artista nesse vídeo:



Obras que ilustram esse texto:

A Virgem de Pentecostes, 1966 - óleo s/ tela 4 x 6 metros
O Nascimento do Dia, 1961 - óleo s/ tela 130 x 160 cm
Os Sequestradores do Mar, 1958 - óleo s/ tela, 2 x 10 metros


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Xilogravuras de Lucie Schreiner




Muito se pode esperar da crescente produção de Lucie Schreiner. Cada uma de suas gravuras aborda uma dimensão do fascínio e oferece parâmetros próprios de fruição. Vistas em conjunto, são capazes de reter por horas o olhar. Nessas composições intrincadas, verdadeiros mundos em miniatura, componentes se entrelaçam, numa intensa simbiose. A elementos biomórficos se unem correntes, laços e engrenagens. Equipamentos eletrônicos e científicos concorrem para instaurar realidades paralelas, fundadas em leis próprias.

Lucie trabalha a partir de uma leitura pessoal da técnica da xilogravura. Em sua abordagem, a forma, comumente tratada em planos, adquire volume pelo emprego de diferentes linhas e texturas. O olhar atento logo percebe que as impressões também são desprovidas dos esperados veios de madeira. Isso ocorre porque a artista dispensa a matéria-prima natural e lança mão de placas de mdf, homogêneas, industrializadas. Desse modo, além das peculiaridades formais e temáticas, é acrescida uma nova camada, evolutiva, à tradição.

Seria errada qualquer objeção nostálgica a esse processo de fatura. Se o uso de placas de madeira evoluiu, historicamente, para chapas de cobre e corrosivos, o emprego de contraplacados e mdf, bem como de quaisquer materiais novos ou alternativos, existentes ou que se venham a inventar, deve ser tido como decorrência da prática do entalhe. A arte evolui nas formas tanto quanto pelos meios consecutivos e há mais de um século essa irrevogável liberdade de proposição foi conquistada pelos artistas.

Nas gravuras de Lucie, a estrutura despretensiosa induz o olhar ao universo dos detalhes. As dimensões e proporções dos elementos seguem uma lógica ditada pelo sentimento e empiria, muito mais do que por rigores geométricos ou correspondências com a realidade. Prevalecem o ritmo, a sequência, a apreensão das articulações em contínuo. À composição, por vezes estática, se contrapõe um movimentadíssimo campo de eventos internos. Figuras se repetem, mas nunca exatamente, mantendo a criação isenta da padronização e reafirmando a abundância assentada na heterogeneidade.

Não é por acaso que essas obras mantêm analogias com mundos. A arte, livre e descomprometida, bebe em fontes diversas, tirando proveito de paralelismos. E Lucie aborda, na atenção aos seres, máquinas, relevos e estruturas, preceitos análogos aos da Geografia, matéria de sua formação. É claro que não se trata aqui de etnografia, nem do inventário de propriedades naturais. Trata-se, em vez disso, de equivalências, que convergem pelo interesse pessoal da artista. Analogias apontam semelhanças entre processos, preservando as distintas naturezas dos objetos em comparação. Por isso, alusões diretas surgidas aqui e ali, os globos, termômetros, medidores e instrumentos científicos, servem para estabelecer contexto e parâmetros à fantasia. O resultado é, por isso, análogo ao mundo em que vivemos, onde se operam a fusão entre seres vivos e tecnologia e a multiplicação de pormenores hiperlativizados.

Da arte pura a pequenos ex-libris, Lucie Schreiner atende a própósitos vários com igual inventividade. O olho percorre as composições, descobrindo reminiscências minerais, tecnológicas e heráldicas, recontextualizadas sob o mesmo espírito criativo. A natureza é relida, seres tornam-se híbridos de mecanismos e a História é sincreticamente revisitada.

Em pouco tempo, a artista partiu de uma concepção narrativa e percorreu antigos referenciais da gravura para atingir uma exuberância que transcende o caráter descritivo. Suas composições iniciais, de temática singela e estruturadas em sobreposições, deram lugar à interação dimensional das formas. No percurso, composições passaram a se justificar cada vez mais por si, garantindo independência de associações textuais e culminando no atual desenvolvimento da artista, cujas bases técnicas e criativas estão consolidadas.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Danilo Ribeiro - Do Pitoresco aos Bits


Castlevania
acrílica s/ tela, 195x260 cm
A disseminação da tecnologia digital, nas últimas décadas, tem oferecido um vasto campo de exploração para a arte. Diante das novas perspectivas, as armadilhas também se multiplicaram e muitos artistas têm incorrido em alternativas erradas. Na pintura, o equívoco mais frequente tem sido a incorporação do universo eletrônico às telas pela simples transposição, em tintas, de imagens elaboradas em computador. Outro mal-entendido tem sido a representação de indivíduos e equipamentos eletrônicos segundo tal ou qual vertente pictórica já consolidada, sem qualquer reflexão a respeito da vida contemporânea e do impacto dessa tecnologia sobre a própria linguagem da arte.

Danilo Ribeiro não cai nesses erros. Nascido em 1983, não teve na era digital um desafio a ser vencido, e sim um meio pelo qual estabeleceu sua relação com o mundo. Sua proposta, portanto, está assentada na própria experiência - uma proposta simples à primeira vista, mas que revela ousadia quando melhor analisada. Danilo emprega a estética de antigos jogos eletrônicos como meio de interpretação da realidade. Em vez de adotar o lugar-comum da frieza das máquinas, oferece a si mesmo como antítese de velhos prognósticos. Em vez de repetir o discurso saudosista, confere à sua relação um cunho histórico, de testemunho.

Não é excessivo frisar o quanto essa cultura eletrônica dos anos 80 e 90 tem de incompreensível para gerações anteriores, que estabeleceram uma relação tardia com computadores e videogames. Pode-se dizer, sem exagero, que o advento do entretenimento digital reconfigurou o processo perceptivo e interativo humano. Antigas práticas lúdicas deram lugar à solidão dos jogos eletrônicos e uma gama de personagens e cenários foi incorporada ao imaginário dos que com eles entraram em contato. Nesse sentido, a falta do convívio direto com esse repertório deixa em suspenso uma dimensão das obras de Danilo. Mas se as gerações anteriores preenchem essa lacuna com ideias de novo, inusitado, as seguintes, já nascidas em um contexto digital mais avançado, consideram, por sua vez, esse universo sob outra ótica, do vintage e do clássico.

A arte da década de 2010 tem sido pródiga nas abordagens que convergem preceitos tecnológicos, urbanos e sociais. Na produção européia e norte-americana, o multiculturalismo, a profusão de informações e alcance mundial dos meios de comunicação levaram a uma diversificação criativa e identitária como jamais vista. Em paralelo ao establishment das grandes feiras e galerias, floresceram vertentes independentes, distópicas, Retrofuturistas, Pós-Apocalípticas, Geeks, Steam e Cyberpunk, além de uma infindade de derivadas e correlatas. Tudo isso tem sido pouco assimilado no Brasil, onde a produção e o cultivo de arte se mantêm presos a um conjunto de parâmetros limitado.

É aqui onde reside o valor contextual da arte de Danilo Ribeiro. Suas telas, ao participarem dessas vertentes, demonstram que à sociedade contemporânea subjaz uma antropologia eletrônica, da qual a arte se encarrega, com liberdade. Cada um de nós leva consigo persistências digitais do passado. Cada um de nós se reporta a um conjunto de espectros tecnológicos que moldaram nosso próprio imaginário. Mas se o pintor se reporta a esse contexto pessoal, abdica, também, da ideia da obra enquanto receptáculo narcísico. Em suas telas, mesmo quando abordados o medo e o isolamento, o solipsismo é deixado de lado, em prol de parâmetros comuns a toda uma geração.
PM, da série Viagem Pitoresca ao Rio Contemporâneo
acrílica s/ tela 100x60cm
Essa abordagem geracional de Danilo não se limita à arquetípica tecnológica. Em telas como as da série Viagem Pitoresca ao Rio de Janeiro Contemporâneo, o pintor transfere para os personagens urbanos o mesmo olhar sociológico. É claro que, nesse caso, um ingrediente de humor permeia as obras, já que os indivíduos aparecem pelo que têm de genérico. Mas, ao empregar a técnica acrílica como aguada, ao modo de aquarela, o artista inclui as cenas na tradição dos pintores viajantes, fazendo com que as sutilezas do pensamento avancem igualmente sobre as referências Debret, Rugendas e Eckhout. Pouco importam a identidade e personalidade das figuras, mesmo que sejam identificáveis. São apenas personagens com os quais, a exemplo dos antigos barbeiros de rua, guardas da corte e vendedoras de quitutes, nos deparamos no atual ambiente urbano. Cada uma dessas imagens já nasce com as dimensões iconográficas do pretérito em que vivemos. Do lutador ao playboy que bebe cerveja, passando por jovens na academia, funkeiros e policiais, os personagens são desprovidos do acessório e do supérfluo, num enfoque direto sobre o papel que ocupam em nosso imaginário.

Danilo encontra na vida contemporânea a matéria-prima que tantos desperdiçam por incorrerem em concepções deficientes da linguagem da pintura. Em suas obras, a abordagem da cultura pop e eletrônica, os personagens conhecidos, as roupas e trejeitos habituais - enfim, as raízes fincadas no cotidiano mais vívido e banal, não existem como um retrato de exterioridades. Nelas, o pensamento sobre a relação do indivíduo com o mundo está desde o início presente, pela consciência da indissociação entre o objeto escolhido e os preceitos de sua abordagem.